O velório de alguém que desaparece é sempre um momento que não se deseja (…)
Quando a morte de alguém que nos diz muito nos desconsola, o regresso ao passado acontece naturalmente, como a querer ressuscitar o que temos apenas na memória. Foi no exterior da casa mortuária do cemitério das Caldas onde os amigos e familiares do Fernando Rocha, mitigavam como podiam a amargura e o inconformismo pelo seu desaparecimento, que a reflexão me revelou pormenores e acontecimentos gratificantes, vividos com o “Fanana”. (…)
Numa fracção de segundos percorri 50 anos, desde o momento em que vi pela última vez o “Fanana” na então novinha em folha Escola Industrial e Comercial. Só regressei para o ver morto.
É este contraste que me causa desconforto. Deixei-o jovem, encontro-o na urna, rodeado de flores, também de familiares e amigos é certo, mas o meu amigo “chato como a potassa” deixou de estar connosco. Posso continuar a recordar os momentos vividos quando o sonho e a vontade de viver eram galvanizantes, mas deixou de estar fisicamente presente. De haver oportunidade para me destemperar com ele para discutir a porca da política em que se transformou o debate de ideias, da esquerda à direita.
Há 50 anos já discutíamos com algum cuidado, na sua casa ou passeando calmamente pelas ruas calmas das Caldas, a decadência de um regime que ainda durou quase uma década.
Vivíamos à procura de resposta no meio de uma montanha de dúvidas. Mesmo assim havia certezas e uma confiança imbatível que “o Salazar não seria eterno”. Desaparecendo o pai fundador do Estado Novo, tudo seria diferente. E a diferença hoje, tem o tamanho da desilusão.
Não podíamos imaginar o que seriam os 50 anos contados desde o último abraço que dei ao “Fanana” magro que nem um palito, no seu fato azul-escuro e gravata de um azul mais claro, indumentária que fazia parte da sua forma normal de se apresentar.
“Escreve, diz alguma coisa” reagiu ele aos meus desejos de boa sorte. O abraço de despedida foi igualmente partilhado com o Mário Lino e o Rogério Guimarães que integravam o núcleo mais coeso de amigos unidos por fortes cumplicidades, por uma imensa ingenuidade, mas acima de tudo, por uma lealdade que podia ser posta à prova.
Em catadupa, a bobine das memórias devolvia-me episódios de partilha. E noto-me a sorrir, num local mais adequado às lágrimas, quando recordei a impertinência do “Fanana”. Aos 17 anos já revelava aquela particularidade que o haveria de consumir até lhe destroçar o coração. A sua verdade não admitia grandes alterações por mais prolongada que fosse a discussão.
Por mais que as carótidas se lhe destacassem nas palavras gritadas como se a sua razão fosse um postulado bíblico.
“Fanana!” Estava pegado ao seu raciocínio. Dificilmente conseguia ouvir os outros. Passado o destempero, quantas vezes não curvava a cabeça como um penitente a querer pedir desculpa por se ter excedido.
Entre a exuberância que hoje persiste no Mário Lino, alguém que faz questão de estar bem com todos, com uma delicadeza no trato e uma simpatia que é invulgar, passando pela descrição do Rogério Guimarães, mais pensador que orador, apostado em medir bem o que diz mas não o que pensa, o “Fanana” foi fruto da revolta, o tal a quem se lhe atropelavam as palavras quando a indignação tomava conta do seu verbo. Vivia a revolução… que revolução!!! digo eu, em cada cigarro que fumava, minado que estava pelo vício.
“Fanana” foi excessivo, truculento, agressivo, mas com uma profunda carga de humanismo nos actos e gestos da sua vida.
Um dia disse-lhe: “Lamento que fizesses carreira profissional no Fisco, uma entidade que me tirou o sono noites seguidas, mas ninguém é perfeito”. Não houve resposta.
Certamente que não se tratou de uma escolha, porque se assim fosse eu não seria o que hoje sou. Como é comum dizer-se: somos produto da nossa circunstância.
Olhar as pessoas que me rodeavam na sua maior parte acima dos 60 anos, é também ver nelas os jovens que já foram. Mas com uma brutal e terrível diferença. No lugar dos sorrisos, da esperança, do acreditar, hoje os mesmos personagens mortificam-se com a resignação, derrotados por um sistema que quer estender as teias o mais longe que puder para nos transformar em carneiros. Tal como há meio século. Só que na altura lutávamos para sair do redil, agora estamos a ser conduzidos para entrar nele, novamente.
É o eterno retorno com que Nietzsche questionava a ordem das coisas.
“Fanana”! Foram 50 anos atrás da esperança redentora… e do seu retrocesso.
Do teu amigo na adolescência para toda a vida…
Carlos Dias