O senhor Jeremias era sapateiro. Não fazia sapatos nem botas. Só os consertava. Era o seu trabalho de há muitos anos. Na lojinha antiga metia meias solas ou colava palmilhas. Perto do seu trabalho abriu um salão onde adultos e crianças, a horas separadas, podiam ter aulas de dança.
Quando essas aulas de dança começaram foi uma alegria para o velho sapateiro. Pensou que os bailarinos e bailarinas haviam de gastar muitas solas, os tacões dos sapatos haviam de ficar cambados e isso ia trazer muita freguesia.
Nessa época ainda vivia com o filho, a nora e a neta Inês, uma menina muito carinhosa e sempre cheia de ideias para novas travessuras que faziam toda a família rir à hora do jantar.
No dia em que o senhor Jeremias se apercebeu da grande mina que podia ser o salão de baile, chegou a casa, entusiasmado, para contar aos três elementos da família as novidades.
Ele também pretendia ouvir opiniões de como fazer saber aos bailarinos, crianças e adultos,a qualidade da sua arte. A loja era muito pequena, não dava muito nas vistas. Os clientes habituais já começavam a faltar e eram quase todos da sua geração, quer dizer, o diligente e hábil sapateiro era da mesma idade das pessoas que lhe traziam obra para conserto!
Estavam já todos sentados na mesa, o Pai já tinha servido a sopa nos pratos fundos, a Mãe já tinha colocado no centro a travessa de bacalhau cozido com as pencas e batatas a fumegar, e a Inês tinha posto os pratos, talheres e guardanapos, ainda antes dos pais terem terminado de cozinhar. O avô Jeremias, como era tratado em casa, tinha o hábito de fazer bonequinhos de pão que amassava com as mãos enquanto conversava. Claro, a Inês gostava muitíssimo dos bonecos que o Avô esculpia: umas vezes saia um gato, outras um ratinho, outras ainda um dado de jogar.
Comida a sopa, enquanto o Pai explicava um pequeno problema que conseguira resolver no trabalho e a Mãe lhe tinha elogiado o jeito e a paciência, o Avô esperava pela bacalhoada para falar das suas aspirações em aumentar a clientela.
Chegada a ocasião esperada, o Avô começou a contar da abertura do tal salão de dança e de como estava a estudar uma forma habilidosa de dar o seu trabalho a conhecer a todos os que se sentiam felizes a dar ao pé e ao sapato.
A Inês quis logo saber o nome do local onde as pessoas iam dançar.
O Avô informou que na varanda do primeiro andar do salão havia uma grande faixa a dizer:
“Pé de Vento”
E a Inês soltou logo gargalhada, a Mãe, que tinha o cotovelo na mesa, apoiou o queixo na mão e sorriu, o Pai declarou que era nome bem achado, pois tinha graça, lembrava o corropio dos dançarinos trazendo nortada às saias femininas.
A Mãe alvitrou que talvez pudessem escrever um bilhete à direção da tal escola das danças a lembrar que, ali bem pertinho, podiam consertar o calçado. O Pai lembrou que talvez fosse boa ideia colocar algum enfeite especial na porta da loja para chamar a atenção de novos clientes.
– Podíamos colocar uma grande sola, recortada com o feitio de um pé, ao correr da porta e da montra! Quer dizer, um anúncio deitado, ao comprimento da loja. Já ficava assim uma coisa mais vistosa. E colocamos um relógio de cuco que dê as horas com música!esta foi a sugestão da Inês.
– Olhe Pai, não é mal pensado, disse o filho do senhor Jeremias. Afinal a sua loja é tão antiga que nem nome tem. As pessoas dizem, “Vamos ali ao Tio Jeremias deitar umas meias solas”, e isso basta. Se ouvirem o cuco, vão espreitar e veem-no a trabalhar.
O Avô estava a modelar uma bolinha de pão que achatou na toalha da mesa, pegou na faca e com a ponta recortou a planta de um pé.
– Uma coisa assim? Em formato grande?
– Isso mesmo, exclamou a Inês. E sabes que nome lhe damos, à tua loja?
– Já tens uma ideia? _ perguntou o Avô surpreendido.
– Tenho sim, Avô! Olha, podia ser “A sola consolada”?
O Avô lembrava a história, dez anos passados. Quantos clientes lhe tinham vindo animar a lojinha, atraídos pelas suas mãos hábeis e pelo relógio de cuco que instalara junto à porta. A quantos teria já contado quem era a autora do nome que causava curiosidade. Contava também que agora a Inês já era grande, estudava publicidade numa grande escola.
Beatriz Lamas Oliveira
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