Que património preservar?

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Saikiran Datta
investigador

Tendo estado a falar da ruralidade, não poderia terminar esta série de crónicas sem referir ao certo o que preservar. Há quem diga que o homem moderno incapaz de gerir a perda vê a necessidade de tudo querer preservar. O património implica um diálogo: a interacção entre um sujeito (no presente) e um objecto (do passado) da qual surge a vontade de unir os dois tempos. O processo de identidade é a afirmação do sujeito que, ao se relacionar, por meio do objecto, se define a si próprio. Logo, o acto de destruir, danificar ou abandonar é separar-se desta relação, sem criar afecto ou valor, colocando-o num aterro de resíduos ou num lar de idosos. O sujeito que condena o objecto patrimonial rejeita a vida e a obra dos antepassados. Um non nosce te ipsum! O objecto que comunica, ao ponto de o seu valor ser reconhecido subjectivamente, como um marco no tempo e no espaço, e cuja exclusão simboliza uma perda afectiva, constitui um bem patrimonial digno de preservação. Se difícil é restringir o âmbito do termo, cujo campo se tem alargado, a sua preservação implica uma complexidade de perspectivas divergentes. Este processo é a escolha decisiva do sujeito de querer prolongar a existência física do objecto. A primeira perspectiva, que nem adiciona nem subtrai, deixa o objecto patrimonial, por mais degradado que seja, numa condição que revela a sua idade e o seu estado. Claro que esta não agradaria àqueles que gostam de ver, por exemplo, os moinhos embelezados, resultados de obras fictícias que adulteram e descaracterizam o objecto. Pois, apenas o novo e o completo constituem o belo, enquanto o velho e o fragmentado são entendidos como feio. A opinião de Wolfdietrich Elbert reforça a ideia que “mesmo em estado degradado, os elementos do património são ricos em história e significado, dois componentes não menos importantes que o aspecto físico…”. Na perspectiva de valorizar a historicidade, a originalidade das características deve ser mantida, evitando apenas a sua degradação. A Carta da Cracóvia, ao definir o objectivo de conservar monumentos e edifícios históricos, tanto no contexto rural como no urbano, realça a importância de manter a autenticidade e a integridade do objecto. Coisa contrária resultaria do capricho de corromper a historicidade dos elementos patrimoniais, como se não houvesse história nem objecto digno de tal valor. Na perspectiva progressista, a funcionalidade do objecto é garantida para uma contínua utilidade, o que implica que a sua existência possa ser posta em causa pela obsolescência. Responde ao cenário rural em que mal se preserva a essência e a materialidade do passado. O sujeito identitário estabelece com o objecto uma relação integral, quer no seu conjunto quer no seu contexto, pelo que a ruralidade e o património se apresentam como
conceitos inseparáveis. Como se justifica, então, destruir um e preservar o outro? ■