Rainha em calda

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Gazeta das Caldas
Maria João Melo
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Os seres empáticos transformam num gesto cordial o momento de fechar a porta, como a da nossa casa, a um amigo, ou mesmo a um desconhecido.
Usa-se uma lentidão peculiar para atrasar o peso do encerramento característico do final da interação humana através dessa linguagem silenciosa. Uma espécie de pantomina que adia a despedida com gentileza. Prolonga-se assim a comunicação com o que ficará ausente através de uma nesga, que atenua a rutura do adeus com um compromisso remetido para uma próxima oportunidade. Porque há um certo constrangimento na hora de ir embora, acenamos e repetimos palavras apaziguadoras para nos desculpar e reconciliar com o aspeto violento da despedida. Quem fica sente-se ligeiramente abandonado e quem sai, algo expulso.

A brecha da passagem estreita-se, mas desta maneira antevê-se, simbolicamente, a possibilidade de um regresso numa promessa intuída de reencontro que o futuro acolherá. Um convite a sempre voltar, num agendamento mudo protelado para outra altura, mais propicia. É um ritual que, apesar de inconsciente, revela a essência conciliadora da natureza portuguesa. Apregoada virtude que tanto capta Vistos Gold, como os restantes estrangeiros que, em geral, nos procuram para se exiliar da insegurança.
Infelizmente, devido à restante humanidade, ou melhor, à falta dela, foi necessário para marcar a propriedade, inventar ferrolhos, fechaduras logo, chaves, cadeados, alarmes e erguer barreiras, sebes, vedações, muros, muralhas, fronteiras e fortalezas para persuadir os vilões mal-intencionados. Aconselhada pelo povo apenas em caso de “casa arrombada trancas à porta”, reserva-se para impedir a intrusão dos malfeitores ou quando se tem algo a ocultar, que não se quer dividir, depois de demasiado se acumular.
Comportamento de territorialidade este considerado como característico dos organismos vivos para tomar posse de um território que assim é defendido contra a invasão, a apropriação ou a exploração, em geral, por membros da própria espécie. É o que é adotado pelos new-neighbors que se auto excluem através da instalação de signos territoriais visíveis, aqueles inestéticos resguardos metálicos. Atitude “offensiva” prontamente apropriada pelos novos ricos nacionais, tomada como exclusivo saloio e que urge ser regulamentada sob pena de intensificar a descaracterização em curso através dos bunkers na região oeste.
Atua-se para com os outros pelo julgamento que se faz de si próprio. Não se confia porque não se é confiável, o que implica adoção de uma estratégia defensiva, mas dificultadora da integração.
Será assim pouco progressista, até um estratagema de agressão, o ato extremo de erguer divisórias, altear cercas, empinar estacaria para encerrar, irremediavelmente, em nome da defesa do património humano, o que agora se designa por direito à privacidade. Já não basta controlar, contra a devassa, os atributos de privacidade nas redes sociais, distendeu-se a outras exibições para
impedir a expropriação pelas miradas dos transeuntes, banir a escrutinação dos olhares alheios, interditar ao diálogo o gueto familiar de uma habitação assim isolada da vida em comunidade.
Anteriormente, em qualquer território nacional, viver num bairro constituía um acordo de parceria em que as partes, os vizinhos, estabelecido implicitamente a fim de cooperar para atingir interesses comuns como o apoio, o desenvolvimento e a integração social pela socialização, o que incluía vantagens económicas em adquirir e trocar bens:
– Oh vizinha, dê-me salsa!

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Maria João Melo
rainhaemcalda@gmail.com

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