11.Para trás e para a frente

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Quantas vezes vamos ao frigorífico, abrimos a porta e olhamos lá para dentro à procura de uma memória perdida do lado de fora? Como se procurássemos uma coisa – conservada no frio (as memórias têm uma temperatura?), fazemos o quê? Repetimos até encontrar a coisa, a memória? Ou desistimos, porque sabemos não ir encontrar ali o que procuramos – na maioria das vezes desistimos por não sabermos o que procuramos. Não é bem desistir, não conseguimos chegar ao fim.
Betty, de Will Anderson, é um pequeno filme de animação em que, a dada altura, um dia, o protagonista percebe que Betty desapareceu, como a manteiga desaparece em cima da sua mesa e não aparece no frigorífico. Betty não se encontra no frigorífico, por muito que o protagonista insista, que desmonte o frigorífico e o filme passe para trás e para a frente, várias vezes, com várias intensidades. O desaparecimento de Betty não é como o da manteiga. Ao perceber isso, o protagonista guarda a manteiga no frigorífico – uma decisão do autor, Will Anderson, que encerra o filme, ficando com a manteiga. Ficamos com a sensação de que ainda poderíamos ter ido mais vezes ao frigorífico.
Nestes movimentos para trás e para a frente não exercitamos tanto a memória quanto exercitamos uma consciência de predição – esperamos encontrar não sabemos o quê, ou melhor, queremos encontrar alguma coisa que sabemos dever estar noutro sítio, no fim. Quando esticamos o braço para, com a mão, agarrar o puxador da porta de casa e o puxador não está lá, parece que faltou alguma coisa ao futuro. As idas ao frigorífico são mais ou menos isso, procuramos um futuro predito, sem definição, certo e que quase nunca lá está. A manteiga é um material interessante, com memória, sempre que arrefece retoma o estado sólido.
O filme Fragile Iron Memory, de Jéssica Gaspar, conduz-nos ao longo de um caminho, estranhamente habitável, que nos convida a uma vida imersa nas suas frestas, ou a mudarmos de corpo. Para trás e para a frente, mais ou menos (prem)editado, é assim que o filme é dado a ver, em alta definição e numa escala interestelar (há um exoplaneta, WASP-76b, tão quente que de noite chove ferro). O convite que nos faz, através da duração e da imersão, é dirigido a um despertar de memórias de coisas perdidas. Como à porta do frigorífico: sabemos que há uma coisa no fim, mas não a vamos encontrar.
Bom Ano! ■

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