
Eram umas três da manhã e a barulheira na rua era tal que acordei esbaforida.
O que é que se passava? Acerquei-me da janela, e por entre as precianas, espreitei. E que vi eu?
O gato assanhado da minha rua miava em tom desesperado. Ele tornou a encher os pulmões
de ar e miou em linguagem de gente: “Eu também quero ser Património Cultural Material da
Humanidade! Se os figurados de Estremoz, o cante alentejano, os chocalhos, a olaria de
Bisalhães o são, sou eu menos que eles? Não sou!”
E já o sol nascia, quando o gato tornou a lançar o seu grito de guerra em defesa
da sua cerâmica; eu senti-me em completa consonância com o gato assanhado
e gritei com ele, repetindo a pergunta: porque não é a cerâmica das Caldas
património cultural da Humanidade? Será menos que os chocalhos?
Não é, de certeza.
Tradição com centenas de anos, fruto da imaginação e da arte de
inúmeros artistas que punham toda a sua inspiração nas formas
ricas de cor e expressividade que nasciam das suas mãos, que
pegavam no barro como se do mais puro oiro se tratasse; não é digna
a nossa cerâmica de figurar em parceria com outras práticas marcantes
da criatividade e da imaginação humana?
Este assunto veio-me à lembrança, quando preparava um texto a evocar a morte de Rafael Bordalo Pinheiro, acontecida a 23 de Janeiro de 1905. E de repente
o meu pensamento é preenchido com a seguinte lembrança: porquê relembrar Bordalo e não honrar todas aqueles “oleiros, filhos e pais de oleiros” que dedicaram a sua vida a criar a mil e umas formas que hoje com honra e gosto apelidamos de louça das Caldas?
Reunimos todas as condições para ambicionarmos tal distinção. Temos um Museu da Cerâmica, encontramos património citadino cerâmico, há colecionadores que dedicam todo o seu interesse a esta cerâmica apaixonante, conhecemos historiadores que consagram o seu estudo a tal matéria, e temos homens e mulheres que trabalham o barro, fazendo com que esta arte seja uma prática viva e sempre renovada.
Certamente que esta ideia de propor a cerâmica das Caldas a Património Cultural da Humanidade, já surgiu a várias pessoas ou instituições. Se assim foi estas minhas palavras servirão para dar mais realce a essa ideia e aliar o meu desejo a outros tantos, já expressos ou não.
Aqui fica esta crónica à especial atenção da Câmara Municipal da minha cidade, que tenho a certeza que a acolherá com o carinho e interesse que a nossa cerâmica é merecedora.