Ainda o país não recuperou dos fogos rurais, que uma outra calamidade bate à nossa porta: a seca. Mais um assunto digno de ser debatido. O mundo rural enfrenta graves problemas. Os dados preocupantes do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) abrangem mais de 80% do território nacional num estado de seca severa e extrema. Muito se deve aos nossos hábitos caprichosos, à falta de boas práticas da gestão de água e à política ineficaz que proteja e valorize os recursos naturais.
Longe vai o tempo em que as mulheres do campo se deslocavam à fonte, bilhas à cabeça, roupa por baixo do braço. Os lavadouros ou “rio das mulheres” faziam parte essencial da sua vida quotidiana. Os velhos hábitos já se desapareceram. Agora é a vez dos recursos preciosos, não por falta de sensibilização, em geral, entre a população rural, mas por causa da vista curta das autoridades. Já ninguém se fala da fonte da moura encantada, do poço da Maria-a-Negra, da Tia Molha, das piscinas sagradas, ou dos banhos de São João. O culto das águas perdeu-se. Os projectos de preservação da água acabam por ser enterrados e esquecidos nas gavetas camarárias. Que indiferença! O resultado dessa atitude é visível. Muitos dos locais históricos e paradigmáticos, incluindo fontes e aquedutos, estão hoje abandonados e dilapidados; e onde ainda não foram invadidos, apodrecem no esquecimento.
O antigo povo atribuía à água qualidades e atributos especiais, tornando-a pura e sagrada. A filosofia védica indiana atribui-a a esse carácter sagrado como um meio para atingir Iluminação. A sua sacralização está presente em várias culturas, onde os rios são sagrados, puros e antropomorfizados. Na tradição judaico-cristã, a sua importância é bem conhecida. Consequentemente, os locais onde brota água eram santificados com superstições e tabus a servirem de um cordão sanitário. O povo atribuía poderes mágicos a esses locais, incluindo as estruturas da captação de água. Uma cruz ou uma imagem do santo protector carimbava a sua religiosidade. Mais importante de tudo, ela possuía poderes curativos, fruto de um saber tradicional que valorizava água.
Ainda nesta abordagem, podemos, em breves palavras, mencionar a riqueza patrimonial das águas termais sulfurosas que abundam na nossa região. As nascentes sulfurosas no termo de Óbidos eram, no outrora, conhecidas pelas propriedades medicinais, cujas águas são idênticas às das Caldas da Rainha. Os romanos fundaram a cidade de Eburobrittium, cujas ruínas ainda preservam a zona termal. Referenciada pelo historiador Pinho Leal, a Quinta das Janelas também possui uma câmara das águas termais, que hoje se encontra em estado de ruína e cuja nascente está desperdiçada. É um cenário triste. Aliás, dizem, na Estremadura, que «entornar água significa lágrimas e tristezas». Temos um relato histórico do século XIX sobre uma iniciativa de edificar as fundações das termas, em Óbidos, como uma «obra de magna utilidade», que não se concretizava por questões orçamentais. Ainda hoje não é uma prioridade preservar e valorizar a riqueza hídrica nesse concelho. Preservação à parte, o potencial das águas termais para o turismo nunca foi explorado. O mesmo se pode dizer das termas das Caldas da Rainha.
A preservação do património, antes de qualquer compromisso financeiro, precisa de uma atitude de humildade e sensibilidade. O gosto pela ruralidade e pela historicidade implica respeito pelo passado e habilidade em apreciar o conhecimento e as atitudes dos antepassados para o nosso benefício. A tecnologia não é um absoluto. É apenas para o nosso uso e não para sermos usados por ela. Não é uma correia transportadora que direcciona o homem, é o homem que a direcciona. A preservação da ruralidade — a nossa identidade-raiz — é da nossa responsabilidade.
CONSUMO DE ÁGUA EXCESSIVO
O desordenamento do território entende-se como a falta de planeamento eficaz e de uma visão estratégica na gestão dos seus recursos. O excesso da dependência ao uso da água municipal e a percepção de que ela é a única fonte, alterou a atitude no povo rural. O uso de poços e a sua adivinhação tornou-se um assunto do passado. A mudança, das fontes alternativas de água para uma rede canalizada, trouxe, igualmente, uma mudança de atitude, dos valores sociais comunitários para um individualismo; de um adivinhador de água para um consumidor de água da torneira. Por consequência, o consumo de água disparou. Os dados corroboram esta afirmação. Se uma população de 11,000 habitantes, referente a Óbidos por exemplo, necessitava de apenas 48,000m3 da água municipal em 1981, é alarmante notar que esta mesma população passou a consumir 880,000m3 de água em 2005. Trata-se de um aumento absurdo de mais de 1800% em pouco mais de duas décadas. Esta tendência nem por perto está associada à explosão demográfica que possa justificar o consumo disparatado. Baseado naquilo que cada obidense consome, se contabilizarmos o consumo a nível nacional, então, cada português gastará anualmente, em média, 80m3 de água, ou seja 849.6 milhões de metros cúbicos para uma população de 10.62 milhões de habitantes. Este valor corresponde ao total da água captada em Portugal continental, que segundo um levantamento realizado pela Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) em 2011, era de 850 milhões de metros cúbicos. De acordo com este levantamento, cada português consome por dia, em média, 220 litros de água. Isto equivale a 0.22 m3 por dia, ou novamente, 80 m3 por ano. Feitas as contas, os dados nacionais revelados neste estudo coincidem com os valores, a nível local, aqui estimados por mim. Corrobora a afirmação de que existe um consumo excessivo de água a nível local, o que também se reflecte a nível nacional. Dada a equação que o país consome a mesma quantidade de água que capta por ano, existe ou não um plano de abastecimento das reservas críticas para atender situações de emergência, como esta que agora enfrentamos? A resposta está no abastecimento alternativo que o mundo rural pode contribuir. Uma pequena povoação da Dagorda tem mais de cem poços, inventariados por mim, para uma população de 473 habitantes.
Quando se fala na seca e na possível futura restrição de acesso às torneiras municipais, será que continuaremos a ter uma atitude de indiferença para com as fontes alternativas – as nascentes, as minas, as fontes e os poços? Água salobra, na terra seca, é doce. Uma simples análise à qualidade bastaria para muitas captações tradicionais serem aptas para o consumo público. Os antigos sistemas de abastecimento de água, os reservatórios e as minas, nos quais dependia o homem do campo, poderiam solucionar, em certa medida, problemas actuais derivados à seca. As obras de ‘melhoramento’ do mundo rural vêm com um preço caro. Nem sempre as intervenções são as mais adequadas. Em nome de preservação, muitos dos locais são descaracterizados, perdendo o seu cunho histórico. Veja um poema popular sobre a fonte em A-dos-Negros. «…Agora mataram-te/ Fizeram-te sepultura…/ Meteram-te um ferro…/Para chorares…/ Não fiques triste…/ Continua a ser/ A minha fonte/ Do Olival Santo…».
OS RIOS CORREM PARA …OS CAMPOS DE GOLFE
No entanto, o problema é grave em outros casos. A poluição dos recursos hídricos é algo que passa despercebido, uma acção que deve merecer coimas pesadas. Veja o caso recente da poluição do rio Tejo. Quantas vezes o ramal do esgoto público não é canalizado para as nascentes de água, tornando a fonte de uma aldeia numa chafurda? Outras vezes, a falta de fiscalização municipal e o desinteresse da Junta de Freguesia tem contribuído para que o acesso à nascente seja cortado, secando por completo uma fonte histórica. As construções por cima das linhas da água, a impermeabilização das áreas de captação, a abertura de captações privadas para uma piscina cortam artérias dos aquíferos subterrâneos, privando as pessoas de usufruírem esse recurso. A propósito, as piscinas tornaram-se num símbolo de estatuto para os ricos e poderosos, cujos imóveis lucram com preços exagerados. As fontes públicas que dignificam as nossas aldeias têm secado devido ao desvio dessa água. Como diz o ditado, «os rios correm para o mar», no contexto de hoje, é para os campos de golfe que vão. As captações e os açudes de grandes dimensões também deixam efeitos negativos no curso natural de água. Veja como uma captação artificial na Usseira secou por completo um ribeiro que atravessava os seus campos, descia à povoação da Dagorda, desaguava-se no Rio Arregaça, no Pinhal de Óbidos, atravessando os campos da Várzea da Rainha em direcção ao Rio Arnóia. Tais construções devem ser proibidas, assim como outras obras, privadas e públicas, que desvalorizem e danifiquem os recursos naturais e as estruturas históricas ligadas à água. O Aqueduto de Óbidos é um outro caso paradigmático. Exemplos não faltarão nessa hora da verdade quando os alicerces da ruralidade enfraquecem. Eis a realidade em que o país vive. Veja esta frase de Vital Moreira: «Não pode considerar-se civilizado nem moderno um país onde cada um abusa do património colectivo em proveito próprio, degredando o ambiente, devastando o espaço público, apropriando-se do que é de todos em proveito próprio».
A seca volta a fragilizar o mundo rural. O factor da chuva é apenas uma gota de água no oceano. As florestas, que são ecossistemas de enorme importância ambiental, contribuem, entre muitos outros benefícios, para a regulação do clima e do regime de chuvas. A mesma floresta arde sem responsabilização e contramedidas. A deflorestação é resultante da intervenção humana. Por este e por outros motivos aqui referidos, o factor humano tem um peso nesta calamidade que o povo enfrenta. Agora só nos resta confiar naquilo que os nossos antepassados faziam quando enfrentavam situações idênticas. Rezavam e organizavam círios a favor da chuva. A servir de exemplo, temos um acontecimento histórico em Óbidos (1730 c.) de uma chuva milagrosa após um período da seca severa e prolongada, enraizando o culto do Senhor Jesus da Pedra. A chuva era o reflexo da relação do homem com Deus e uma consequência das suas acções. A dessacralização das fontes, e dos locais sagrados relacionados com água, é o fruto de uma sociedade moderna e laica, onde prevalecem atitudes de desrespeito pelo passado e pelo meio-ambiente. Um sinónimo de degradação do homem moderno, que facilmente perde os seus valores culturais e religiosos. O medo, que um dia a água secasse, está presente na seguinte superstição local: «Quando vão buscar água à fonte, costumam escorrer bem o cântaro antes de sairem, porque se levam no fundo algum resto, a fonte seca». Se na percepção dos nossos antepassados, o excesso de chuva tinha sido a consequência «dos nossos pecados», que maiores pecados terão trazido esta actual seca?
Por: Saikiran Datta
Professor, investigador, autor