(Continuação da Seclar 1)
A volatilidade da direção geral da Secla desperdiçou os esforços descritos na anterior crónica. Num rompante destrói-se o que é moroso edificar.
A labuta esvaiu-se nas disputas internas por poder, focada em necessidades individuais em vez de cuidar do interesse coletivo da organização laboral pela qual bulham para dirigir. Em cenários como este, nas sociedades anónimas das grandes e médias empresas, os cargos de liderança são obtidos por benefício em dispor de uma eficiente rede de influências, com ou sem secretismo, numa espécie de offshore de capital social. Fenómeno em que a falta de qualificação é insignificante, mas que determina uma sucessão de gestores, cuja incompetência se mostrou diretamente proporcional à extensão dos apelidos e peso dos nomes sonantes, acabando por precipitar a insolvência, em que a crise económica teve as “costas largas”.
Alguns trabalhadores foram logo saneados numa dessas fases de purga compulsiva, outros tolerados apenas por mais uns tempos de acordo com o peso do valor das indeminizações, mas ainda testemunhei processos de tortura laboral em que se confinaram funcionários dedicados a espaços fechados sem instrumentos de trabalho, remetidos ao castigo da ausência de tarefas para que a irrelevância os conduzisse, ou à loucura, ou à demissão espontânea.
Embora não tenha vivenciado a convulsão do encerramento, experimentei a desilusão que consome a resistência emocional de quem dedicou o melhor de seu empenho laboral a uma empresa.
É violenta a interrupção de uma coligação, aparentemente estável. Seja com os processos de despedimento na Secla, na Triumph, ou nas inúmeras outras. Neste, até os moldes foram mandados destrui para que não restassem provas da existência de toda ou qualquer coesão social, em que os colegas de trabalho se tornam uma segunda família com os quais acabamos por partilhar mais tempo desperto do que o que vivenciamos com os familiares e amigos. O sentimento de pertença a um desígnio coletivo produtivista reduzido a cacos.
Agarrados, não queremos largar ou aceitar a natureza efémera de uma empresa notável.
Perdoem-me a crueza quando afirmo que o que já passou acabou. Agora já não há como voltar atrás. Porventura, se tivesse havido vontade para tal, teria sido possível encontrar uma solução idêntica à que a Bordalo Pinheiro beneficia.
A grande constante da existência é a perpétua mudança. A impermanência é a realidade.
A entropia de todos os sistemas a que as relações humanas não escapam assim como as organizações que à sua imagem espelham a garantia do drama da dissolução. Só não é preciso acelerar alienadamente para esse desígnio transitório.
Alegrarmo-nos com o fato da Secla existir na memória de uns tantos, na marca de uma infinidade de produtos reproduzidos à exaustão, espalhados pelos quatro cantos do mundo.
A respeito do aspeto transitório e impermanente da condição humana, da vida e de todas as coisas que povoam e preenchem o planeta e também porque atravessamos a época natalícia concluo esta cronologia anual de “croniquitice” com a seguinte passagem da obra de “Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago: “Jesus envolveu a tigela na manta e meteu-a no alforge enquanto pensava que tinha de dar atenção, a partir de agora, à maneira de lidar com ela, estes barros são frágeis, quebradiços, não passam de uma pouca de terra a que a fortuna deu, precariamente, consistência, como ao homem, afinal.”
Maria João Melo
rainhaemcalda@gmail.com