Intervalo Doloroso

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Gazeta das Caldas

Sem maquilhagem

Li recentemente “O Grilo na Varanda — Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2001)”, edição irrepreensível da Tinta-da-China, com introdução e notas de João Pedro George. Parte considerável desta correspondência foi enviada de Caldas da Rainha, onde Pacheco viveu em condições de indigência por demais conhecidas. Alguns dos postais enviados pelo autor de “Comunidade” reproduzem vistas parciais da cidade, noutro observa-se uma fotografia de vendedeiras de cavacas no mercado, sendo a pedinchice, na diversidade de temas abordados, uma constante indisfarçável. Mas o que mais salta à vista não é a paisagem embelezada dos postais. Naqueles tempos, a fome, as perseguições da negra e aborrecida sociedade salazaresca, a moralidadezinha católico-policial, os ajustes de contas, oferecem-nos toda uma outra panorâmica que as palavras talvez ajudem a contemplar: «neste nosso querido País a vergonha começa (ou devia começar…) no alto da pirâmide, e cobre-nos a todos».
Quem tenha lido Pacheco sabe que ele viveu em guerra com a moralidade de pequenos-burgueses que é a nossa. “O Caso das Criancinhas Desaparecidas” talvez seja, de todos os seus textos, aquele que mais diz aos caldenses. Começa assim: «Gosto muito de Caldas da Rainha». Lá para meio já só gosta assim-assim e a rematar não gosta mesmo nada. O texto fala de criancinhas que desaparecem quando os cisnes sobem a terra, indo parar à Lagoa de Óbidos pelos esgotos da cidade e dali ao vasto mar. Parece matéria surrealista. Não é. Numa das cartas a Laureano Barros, o fenómeno de algum modo se aclara: «Bem sabemos que, em terras como o Montijo, Caldas, etc., as parteiras despacham para o balde mais fetos que bebés ajudam a nascer. Nas Caldas, a Irene fez o aborto de dois gémeos, foi a maior asneira da minha vida». O libertino era declaradamente antiaborto, levando a convicção até às últimas consequências: foi pai de 8 filhos. O caso das criancinhas é mais que um postal da miséria social experienciada por Pacheco nas Caldas da Rainha. É um postal da nossa eterna insensibilidade social, é sobre uma tribo, a do autor, que foi sendo estilhaçada aos poucos, com um filho mandado para aqui, outro retirado para acolá, outro levado por odiosos «ladrões de vidas».
Pode parecer estranha tal inflexibilidade moral, resvalando aqui e acolá para julgamentos que suporíamos ausentes na mente de um homem que advogava para si toda e mais alguma liberdade. As pessoas são um vazadouro de contradições e de paradoxos, é isso que as torna pessoas. Caso contrário, seriam robôs. O que importa ressalvar são as constantes na fórmula anárquica da vida, os tiques sociais que se repetem e incessantemente reencontramos nos mais diversos retratos. A cagança, a jactância do título académico, a vaidade mesquinha, o tratamento doutoral, privilegiado, a empáfia de quem não tem onde cair morto e se apresenta ao mundo como se fosse rei do bairro. Nesta matéria, Caldas da Rainha tem enormes vantagens. Pacheco detectou-as, colocando na montra «gentinha simpática mas de pôr a pau, talvez convicta mas sem espírito de autocrítica nenhum». Ou «carneirada em jogo duplo, bem instalados e querendo instalar-se mais e mais».
Creio que nunca como hoje fez tanta falta certo sentido da inconveniência. Daquela que não se reduza ao papel decorativo e caricatural da figura à margem. No mundo pós-moderno das pós-verdades, assaltado pelo ridículo de figurões grotescos a quem chamam de populistas, sente-se a falta de quem aponte o dedo e inquiete. Porque toda a gente prefere uma mentira consoladora a uma verdade inquietante. Já ninguém aprecia rostos desmaquilhados, daqueles que acabam sozinhos ao fundo do salão.