Avelino Rodrigues
jornalista
O 25 de Abril não caiu do céu de paraquedas. Nem foi importado da guerra da Guiné, assim sem mais nem menos. Tenho escrito que o processo do 25 de Abril é um rio com muitos afluentes, descortinei três, mas só trato de um que vi nascer em 1967 no RI5 no Regimento de Infantaria 5 de Caldas da Rainha. Chamei-lhe «o primeiro afluente», falo da fita do tempo mas não só, como há-de ver-se.
Em 1966 o RI5 era um regimento fundamental do Curso de Sargentos Milicianos (CSM) com seis companhias de instruendos, além das duas companhias de soldados “prontos” (Formação e Caçadores) ao todo mais de mil e duzentos rapazes, que fui chamado a assistir. Por voltas que a vida dá, eu era capelão da Unidade. O corpo de oficiais era constituído maioritariamente por três dezenas de alferes e tenentes do Quadro Permanente (QP). Eles tinham saído dos últimos cursos da Academia Militar, conheciam-se todos, e esta circunstância inspirava o “espírito de corpo” e estimulava o brio de cada um, em sã competição profissional.
Ora eu também tinha a meu cargo a freguesia dos Vidais, a sete quilómetros do quartel. A casa paroquial passou a ser o ponto de encontro do nosso grupo de jovens oficiais do “Cinco”, para jantaradas e discussões pela noite dentro. Ao contrário da messe de oficiais, onde as críticas ao regime e a questão colonial apenas se balbuciavam em voz baixa, acontece que naquele ambiente recatado podíamos falar à vontade.
O afluente das Caldas
O grupo cresceu rapidamente, já éramos mais de vinte, a casa tornou-se pequena e tivemos de ocupar um terreno da paróquia, entalado entre a igreja e a estrada de Rio Maior (onde mais tarde se instalou um pequeno campo de futebol). Fazíamos uma grande fogueira para as nossas espetadas em pau de louro verde, que se tornaram famosas. Gritava-se acaloradamente, à medida que os jarros de vinho se esvaziavam, enquanto o diabo esfrega um olho. A curiosidade dos paroquianos, que se orgulhavam de ver tantas fardas em meu redor, fez-me soar as campainhas de alarme, aquilo não era prudente. Para mais, residia na aldeia o presidente da Câmara, primeira autoridade do Estado no concelho, em cuja casa vivia também o seu genro, major Monroy, oficial prestigiado do “Cinco”. Um e outro eram simpáticos comigo, mas não tinham nada a ver connosco, antes pelo contrário.
Foi então que mudámos para a Matoeira, um lugarejo a três ou quatro quilómetros do quartel) onde entretanto eu tinha convencido o padeiro António Jacinto a improvisar um pequeno restaurante para nosso refúgio recatado, «na adega anexa à padaria. E assim passámos a ter um «restaurante exclusivo», que podíamos reservar só para nós, quando entendêssemos, era só dizer. Soltavam-se as línguas e falava-se de tudo, sem tabus. Contra a guerra sem saída, contra o Governo que oprimia a Nação, contra as chefias militares que estariam a pôr em xeque o prestígio das Forças Armadas.
Naquele grupo, talvez só eu me tenha apercebido de que, se esta experiência se replicasse noutros grupos militares, o Regime teria os dias contados. Só não sabia quando, mas quase apostava que o mesmo contexto (a guerra e a ditadura) aliada à uniformidade dos agentes dispersos (os militares descontentes) provavelmente produziria o mesmo efeito. Não direi o mesmo, mas análogo ou parecido, porque as circunstâncias e os agentes não são uniformes como os números, são variáveis, e as pessoas muito mais. E foi assim que, sete anos antes do 25 de Abril, eu vislumbrei uma luz ao fundo do túnel.
Mas foi preciso esperar sete anos, muita guerra, muito sofrer, muito arriscar numa conspiração em crescendo, muito trabalho de organização do Movimento dos Capitães, desde uma simples reivindicação de prestígio classista até à determinação política de derrubar o Governo para acabar com a guerra colonial.
O afluente da Guiné
Nos primeiros meses de 1974 entre os mais impacientes destacavam-se os spinolistas, em especial os que recentemente tinham chegado da Guiné, em companhia de Spínola, que desistira duma guerra sem saída, recusando prolongar o mandato na Guiné. A seu lado o General agrupava uma corte de centuriões calejados da guerra, que se consideravam a nata do Exército Português. Era um grupo de respeito. Além destes militares profissionais, escolhidos a dedo pelo Chefe, assinale-se a importância de muitas centenas de oficiais milicianos e ex-milicianos do Quadro de Complemento). Nesta narrativa destacam-se os medalhados Armando Ramos, Fernando Barbeitos e Virgílio Varela, mas é quase injusto apontar nomes, porque eles eram às centenas em comando de tropas, para além do teatro de operações da Guiné.
O seu número era ainda maior em Angola e Moçambique, onde obviamente não eram spinolistas, só que viviam os mesmos problemas da guerra. Formavam o Quadro de Complemento (QC), uma classe especial de oficiais feitos à pressa, ao lado dos profissionais oriundos da Academia Militar que constituíam o Quadro Permanente (QP) donde surgiu e se destacou o «Movimento dos Capitães» .
O afluente africano foi um “ronco”, como se dizia na Guiné, lá isso foi. Quando os dois afluentes se juntaram, a conspiração tornava-se imparável. Mas era preciso conter a força spinolista, pouco politizada, militarista, voluntarista e até arrogante – tarefa assumida pela Comissão Coordenadora e Executiva (CCE) do Movimento, onde sobressaíam Vítor Alves, Otelo e, mais uma vez, Vasco Lourenço, que em 15 de Dezembro de 1973 havia sido escolhido para coordenador operacional, isto é, comandante virtual das forças quando se decidisse sair para a rua.
Caldas da Rainha porrada já!
Se é verdade que os spinolistas eram mais spinolistas que Spínola, nunca isso foi tão manifesto como na crise das Caldas em 16 de Março de 1974. Na ausência de Vasco Lourenço, preso em 09 de Março e transferido para os Açores em 15 desse mês (coincidência ou não, era a véspera da aventura das Caldas) o Movimento das Forças Armadas perdera o seu primeiro coordenador de operações, que só mais tarde em 24 de Março seria formalmente substituído por Otelo Saraiva de Carvalho. Mesmo que nesse ínterim Otelo tivesse legitimidade automática para ocupar o posto (era secretário da direção operacional e braço direito do coordenador) certo é que ainda não tinha aquecido o lugar nem sequer dominava a rede de contactos montada por Vasco Lourenço. Este ocasional vazio de poder foi preenchido por um pequeno grupo de impacientes spinolistas, acabados de chegar da Guiné.
Sob a pressão do major Casanova Ferreira, rabiscou-se à pressa um “plano de operações”, menos que elementar. Traído pela sua proverbial generosidade e pela impetuosidade de Casanova, o major Otelo Saraiva de Carvalho deixou-se arrastar para a tentativa de golpe, na esperança de agarrar as pontas desgarradas da conspiração. Só a falta de comunicações pode explicar que Otelo tivesse perdido toda a noite de 15 de Março a correr de um lado para outro e de quartel para quartel, sem mobilizar ninguém. Em Lisboa, Manuel Monge, Casanova e Almeida Bruno procuram convencer o «Velho» (que era matreiro e havia de ficar-se em copas) e afadigam-se com Otelo Saraiva de Carvalho na tentativa de última hora de mobilizar unidades afectas (mas de facto indisponíveis, porque quase todo o pessoal tinha saído de fim-de-semana (aspecto que deveria ter sido previsto, mas de que os revoltosos se aperceberam tarde).
O RI5 encontrava-se «sobre rodas» desde o dia 13 de Março, quando esteve iminente uma tentativa de golpe (entretanto adiada) para impedir que os generais Costa Gomes e António de Spínola fossem afastados da mais alta chefia das Forças Armadas por causa do livro «Portugal e o Futuro» do Spínola, publicado em 22 de Fevereiro.
Tendo-se confirmado a exoneração dos dois generais que o Movimento dos Capitães havia escolhido para líderes formais do seu projecto, era enorme a indignação nos núcleos de conspiradores espalhados pelas «unidades de força». Os spinolistas estavam convencidos de que seria fácil cavalgar a rede do Movimento para iniciar o golpe, especialmente o RI5 das Caldas da Rainha, no pressuposto de que as tais Unidades se lhe juntassem, Santarém, Lamego, Viseu, Mafra e Academia Militar. É então que os quatro conspiradores impacientes que em Lisboa julgavam interpretar a vontade da Comissão Coordenadora (de facto paralisada) enviam para as Caldas o capitão miliciano Armando Ramos, como estafeta, com ordem para arrancar.
O RI5 era a única Unidade realmente preparada e municiada, só precisava que a Comissão Coordenadora desse ordem de marcha. Para onde, logo se verá. Quando o capitão Ramos chegou às Caldas pelas 23 horas da noite de 15 de Março, tanto os oficias do Movimento como os poucos spinolistas do quartel aceitaram a voz do «estafeta» como ordem de marcha da Comissão Coordenadora, no pressuposto de que Otelo já estaria no comando de operações em Lisboa. Embora minoritários, os milicianos spinolistas do quartel, evidenciaram-se na tomada da iniciativa, com destaque para o capitão Virgílio Varela que se distinguira na prisão do comandante. Foi total a adesão dos oficiais do Movimento, se bem que o mais antigo deles, o capitão Gonçalves Novo, elemento preponderante do Movimento no RI5, se revelasse menos sintonizado com a jactância do «estafeta», não tendo participado na marcha sobre Lisboa. Preferiu assumir o posto de oficial de dia e organizar a defesa da Unidade. Também o capitão Piedade Faria, comandante efetivo da Companhia de Caçadores, a única força de combate, declarava não abdicar do comando dos seus homens. De resto todo o pessoal comungava do objectivo comum visando o derrube do regime.
E chefes? Quando o golpe estalou no RI5 os revoltosos não tinham chefe nem voz de comando, «até parecia que ninguém queria chegar-se à frente», como Artur Ramos escreveria mais tarde. Era tudo “interpares” numa sã camaradagem e sem ambições pessoais. Além do mais, não se conhecia um plano efectivo de operações, apenas estavam convencidos de que iam ao encontro das tropas de Lamego e doutras Unidades, que era suposto estarem em marcha sobre Lisboa. Era rebate falso. Lá saiu a coluna-fantasma, que só parou à porta da capital, onde foi sustida por Monge e Casanova, os quais assumiram a responsabilidade do fracasso e acompanharam a coluna no retrocesso às Caldas. Entretanto o quartel era cercado por tropas da Região Militar de Tomar, sob o comando do brigadeiro Serrano, que anos antes tinha sido comandante da Unidade. Apesar da sua defesa organizada a tempo, os revoltosos só procuravam adiar a rendição até constatarem que estavam isolados e que mais ninguém saíra da toca.
E afinal quem comandou a coluna para Lisboa? A questão só vale a pena, porque tem sido um cavalo de batalha dos centuriões spinolistas, que sempre se revelaram resolutos mas vazios das ideias do Programa do Movimento, para além de se declararem vigorosamente anticomunistas. De facto quase todos eram «anticomunistas primários” (nome que ao tempo desclassificava qualquer um). Mas nada anula o facto de que o essencial da força era a Companhia de Caçadores, sob comando do capitão Piedade Faria. Os camaradas reconheciam-lhe a genica, era o «puto Faria» que todos estimavam. Foi ele que deu ordem de saída à coluna pelas 4 horas da manhã do dia 16 de Março e, mais tarde, consumado o fracasso, foi ele quem foi chamado à porta de armas pelo comandante das forças sitiantes, brigadeiro Serrano para negociar a rendição, que Monge e Casanova tentavam protelar, em nome de Spínola, ao que diziam. Consumada a rendição, todos os oficiais implicados, cerca de trinta, foram presos e o estado-maior spinolista ficou decapitado, incluindo Almeida Bruno que a Pide surpreendera perto da casa de Spínola em Lisboa. O General ficava sem estado-maior. E o governo, esse inocentemente declarava vitória (de facto, uma vitória pífia) não se dando conta de que a sonolência do Regime duraria umas poucas semanas até 25 de Abril.Da aventura spinolista das Caldas pouco mais restou que uma polémica serôdia. Décadas mais tarde, em Abril de 1999 Armando Ramos declarava no jornal «Tribuna de Macau» que tinha «trazido» a força até Lisboa, dando a entender que teria sido ele o comandante, mas sem empregar a palavra. Porém, doze anos mais tarde, em 21 de Abril de 2011 numa entrevista à «Gazeta das Caldas», assume claramente o comando da coluna, dizendo que havia sido designado numa reunião dos revoltosos do RI5, por ser titular de duas Cruzes de Guerra e ter experiência de combate. Tinham passado 37 anos após os acontecimentos! Em apoio da sua opinião vale-se do depoimento de Gonçalves Novo, inserta no livro «O Movimento do Capitães e o 25 de Abril» publicado em 1974. Só que tal interpretação colide com a dos autores e sempre foi desautorizada pelo próprio Gonçalves Novo, que Ramos passou anos a vilipendiar.
Em abono da verdade, declaro que não percebi o que escreveu Otelo sobre este assunto no seu livro «Alvorada em Abril», reconheço a capacidade estratégica do comandante operacional do 25 de Abril mas, claro, não tinha que ser um historiador.
Nota final mas não conclusiva
De tudo o que pude ver, não direi que a polémica das Caldas esteja arrumada, mas aqui me atrevo a propor uma breve análise, que tenho por segura.
1) A coluna das Caldas avançou sem comando porque tinha dois comandos, um era formal (Piedade Faria) outro era «subversivo» (Armando Ramos). Ainda bem que não tiveram de actuar. Manifestamente os conjurados não tiveram tempo para chegar a acordo, pressionados pela convicção de que estavam atrasados para o presumível encontro com as Unidades do Norte. Tal como Armando Ramos também Piedade Faria contava entregar a coluna ao comandante operacional, supostamente Otelo, que estaria em Lisboa à espera das colunas que deveriam estar em marcha, como de Lamego se anunciara em vão.
2) O 16 de Março é uma iniciativa spinolista sem Spínola, provocada por devotados cortesãos mais papistas que o papa. Desejosos de mostrar serviço ao chefe, disputam os seus favores, menos benesses que poder. Não constituem um corpo orgânico com chefias hierarquizadas, são peões individualistas ao dispor de Sua Senhoria, que de facto teme partilhar responsabilidades porque não arrisca partilhar poder. O 16 de Março revela-se como uma tentativa de antecipação spinolista ao Movimento dos Capitães. Mas o caudilhismo bonapartista de Spínola era uma doutrina redutora na política interna (enquanto projecto de «democracia musculada») e uma estratégia neocolonialista utópica na questão africana (enquanto projecto federalista desfasado no tempo). «Não estará doze anos atrasado, meu General?», tinha-lhe eu dito em 1972, e ele só me respondeu que não havia alternativa e que «em Cavalaria não conhecemos becos sem saída, vamos em frente e rebentamos com o muro».
3) O 16 de Março não foi pensado como ensaio geral do 25 de Abril, mas acabou por ser um exercício muito útil para corrigir falhas técnicas e afinar a base política do Movimento dos Capitães. Daí que ainda agora os spinolistas tentem apropriar-se das Caldas, considerando-se pioneiros do 25 de Abril. O que não confessam é que o «seu» 25 de Abril seria um golpe para colocar Spínola no poder com a sua política autocrática, onde temporariamente cabia a Pide e a continuação da guerra, além de projeto federalista utópico que almejava aglutinar as ex-colónias numa Commonwealth da portugalidade.
Epílogo breve
No meio das suas contradições, o general António Spínola ficou-me na lembrança com a grandeza de uma figura de tragédia na derrocada do Império. Não foi um homem do futuro, foi um homem lúcido num momento louco do destino português. Era um patriota puro-sangue, dos que sentem a voz dos seus «egrégios avós» e conservam (o quê?) aquilo que merece conservar-se, o património da história e a saudade do fado lusitano, muito longe dos pós-modernistas da treta e de outros presumidos sem tino, que se enfartam de outras lérias e já não sabem nem sonham o que seja uma Nação. Por mim confesso que nunca esquecerei a experiência de ter conhecido “o último general romântico”, que procurei entender no tablado dos jogos de guerra, a política e a guerra-espetáculo, que ganharam forma na representação mediática dos jornalistas do meu tempo. ■