«Uma outra voz» de Gabriela Ruivo Trindade
O título deste livro de Gabriela Ruivo Trindade (n.1970) remete para uma outra voz ao lado das cinco vozes que integram a narrativa. São quatro vozes em Estremoz e uma em Lisboa mas os blocos de prosa são organizados por uma ordem que não é cronológica – 1954, 1960, 1978, 1974 e 1927. Essa outra voz, a sexta voz do discurso deste livro, pode ser a da autora e narradora – o que faz da concepção de «Uma outra voz» uma homenagem à literatura. Por exemplo a figura do escritor Sebastião da Gama surge na página 41 («O poeta morava no segundo andar de uma casita no Largo Espírito Santo») tal como os livros surgem na página 74 («A Morgadinha dos Canaviais, Os Serões da Província, As Pupilas do Senhor Reitor, Uma Família Inglesa») ou as livrarias na página 117: «Por essa altura conhecemos o Zé Ribeiro e a Lúcia. Descobriste a Ulmeiro numa das tuas caminhadas matinais.» Dentro da livraria Ulmeiro a ignorância dos Pides dá origem a equívocos: «E se não se pode falar de Lenine nem de Estaline, também não pode falar de Racine!». Lisboa não está tão longe de Estremoz como pode parecer. Basta ver a questão dos panfletos («Lembrei-me dos papéis escondidos nas gavetas da oficina dos tios») ou como o primo Zé Eduardo segue o mesmo caminho (Angola) do tio Mariano embora muitos anos depois: «O primo Zé Eduardo lá seguiu para Angola. Toda a família ficou em sobressalto.» Esse mesmo tio Mariano que ensina à sobrinha à cabeceira da cama: «A gente só tem medo daquilo que é maior que nós. Por isso, para combater o medo só há uma solução: fazermo-nos maiores que ele». Lídia, essa menina, tinha ouvido a mãe explicar-lhe um beijo na sacristia («Aquilo que tu viste foi um disparate, não torna a acontecer») afinal a mãe («mulher amarga, cinzenta, afundada em melancolia») disfarçava sempre tudo seja nos pensos higiénicos («Ó Maria, leva daqui este pano com mercurocromo e põe-no no lixo!») seja no dia do casamento da filha adoptada: «O amor também nos aperta às vezes o coração. Tantas vezes! Mas também alarga». Na página 280 um padre explica o amor («O amor é a única coisa que fica quando tudo se vai») como o único valor perene da vida mas já na página 194 a juventude se opõe à morte («a juventude é o melhor remédio contra a morte») e na página 195 se compara o ódio ao amor: «O ódio é um sentimento muito pesado. O amor, pelo contrário, torna-nos leves.» A dicotomia «vida-morte» surge na terceira voz («Morrer não dói nada. O que custa é estar vivo.») e coloca de novo a linha Lisboa/Estremoz quando em Lisboa um paraplégico («Este velho tem vinte e quatro anos») recorda um primo assassinado em Estremoz: «estou quase certo de que o primo Luís se dedicava a actividades clandestinas». Na cama dos hospital, o homem vítima dos tiros da polícia na manifestação pensa sobre o seu lugar no tempo («somos minúsculos, microscópicos, e pensamos que somos tudo e julgamos que temos um lugar no mundo») e sobre a sua morte: «Não sou nada. Não quero ser nada. E o pior é que, dentro de mim, nenhum sonho. Nenhum mundo. É isto a morte.» Depois da leitura apaixonada destas 331 páginas (Prémio Leya 2013) onde até o glossário se deve ler pode alcançar-se uma conclusão precária. Seja sobre a vida («Os rios não correm para trás») seja sobre a verdade: «a verdade não está em parte nenhuma. A verdade criamo-la nós, com as estórias que inventamos».
(Editora: Leya, Capa: Rui Garrido, Foto da autora: Emanuel Ferreira)
José do Carmo Francisco