UM LIVRO POR SEMANA / 488 / «Águas negras» de José Viale Moutinho

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aguas-negrasJosé Viale Moutinho (n.1945) dedica este conjunto de 11 contos à memória de Urbano Tavares Rodrigues e de Orlando da Costa. Poeta, ficcionista, dramaturgo e ensaísta, este autor tem obras traduzidas em vários países (Itália, Áustria, Eslovénia, Hungria, Brasil, Bulgária, Alemanha, ex-União Soviética) e também em Espanha – castelhano, catalão, galego e asturiano. Embora o primeiro conto («Voltar, voltar») tenha a ver com a Terra cujo nome é Chãos («Chãos não existe, apenas eu estou aqui encerrado neste maldito apartamento desta lôbrega vila de província») e outros como «Mani Manicómio» e «Quatro tiros de revólver» tenham como pano de fundo a cidade do Porto e a Loucura, uma parte substancial dos 11 contos tem a ver com Veneza e daí não se estranhe o título geral de «Águas negras».

Veneza está presente no conto «A orquídea envenenada»: «As multidões debruçando-se das janelas e das varandas, vendo passar os mascarados pelos estreitos passeios, nas gôndolas decoradas, uns cantando outros dizendo poemas absolutamente indecorosos, ou de Baffo, em veneto vernáculo, ou de Aretino, outros gritando frases obscenas em italiano mas benzendo-se diante de cada templo.» Tal como surge no conto «Um dia na vida de Zorzi Baffo, poeta e patrício veneziano» assim definido «a máscara de Zorzi Baffo era ele próprio, um rosto gordo, flácido, esmeradamente escanhoado, com uma verruga, uma cabeleira postiça, as marcas de patrício, o pó de enfatuado». E também no conto «Triste memória da acqua alta»: «O mosteiro das freiras sandalianas de San Vittorio não constituía um universo de vocações, pelo contrário, comportavam-se como jovens e mulheres de todas as idades revoltadas com as suas famílias e com toda a gente.»
Noutros três contos Veneza continua presente: «Dois jovens turistas deambulando», «Lolita no pronto a vestir» e «O sonho de Giovanna» que afirma: «O meu sonho era entrar no Florian de braço dado com um poeta. Agora com um que escreve romances…» Algo de parecido se passa no conto «Balzac foi-se embora!» no qual Veneza é uma referência distante quando Molly reclama perante Annie sobre Balzac – «Nem sabe fazer versos…». E Annie responde: «A sério? Mas dizem que é escritor…»
Segundo nos parece, para José Viale Moutinho, as águas de Veneza podem ser a metáfora ideal para o crime e para o ciúme, para a paixão e para o amor, para o sangue pisado da vida – enfim. E toda a literatura é uma mistura feliz e sábia do sangue pisado e do estilo. Vida e escrita na dupla inscrição da página que é sempre uma máscara mesmo quando não parece.
(Editora: Lápis de Memórias, Design Gráfico: Bruno Inácio)