A ficha de leitura começa com uma saudação à jovem editora «Sulfúria» que reedita este livro de Santos Fernando (1927-1975) antes publicado pela Editora Futura em 1975.O autor apresenta-se na página 90: «Tendo publicado tudo o que publiquei durante o regime fascista (nasci em 1927, não podia publicar noutro!) sem obter um prémio, uma bolsa ou um mandato de captura, sinto-me hoje mais livre para poder aprisionar a imagem mais tremida de um Clero que mais se benze, de uma Nobreza que mais se encolhe e de um Povo que mais ordena.» Sendo o livro datado de 5-3-1975 não admira a memória da Censura: «Urinava moral com cem por cento de hemoglobina, num alçar canino de perna contra a árvore genealógica dos tartufos» Nem é de estranhar a referência ao Estado Novo: começa por definir o tempo («uma ditadura que conseguiu manter limpas as paredes enquanto nos sujava o tecto!») para a seguir lembrar «Os mortos vivem em paz e os vivos viviam mortos» e, por fim, perguntar: «Chamará o senhor paz, um chefe de família não ouvir tiros na rua mas em casa ser bombardeado pela fome? Não apanhar na esquina uma paulada no crânio mas ter que privar-se de pensar com esse crânio ileso? Não ser algemado ou agrilhoado mas ser compelido a bater palmas ao que detesta e a não patear o que abomina?» Na página 80 surge uma referência aos burgessos da PIDE que iam apreender livros à Livraria de Luís Alves Dias em Campo de Ourique mas além dos livros levavam o poster com o actor Charlot: «Este gajo é o pior comunista de todos» – foi o comentário do labrego.
Num livro de 1975 pode dizer-se que Santos Fernando continua a sorrir como no primeiro livro em 1957. Por isso pode escrever «A vida é uma carícia» ou «Há um santo para cada dia mas nem todos os dias são santos» e dissertar sobre o Mundo: «Procuras uma solução para o mundo? O quê, aqui? No próprio mundo? Chama-se a isso desenterrar palavras, sem glória.» Este livro é também uma viagem no tempo, no século 20 («Sexo 20») com uma memória da tropa em Tavira em 1948 (Luz, Fuzeta, Manta-Rota) onde havia um sargento arguto e um capitão que fizera duas guerras a cavalo na secretária. O facto de ter «ressuscitado» o avô Lindolfo leva-o do sorriso («O morto não dorme, repousa») àquilo a que podemos chamar a profecia: «A menos que, cem anos depois de me enterrarem, o meu descendente, em cuja fronte haverá a localização dos planetas, se resolva por uma das alternativas: pôr sobre a lage as minhas obras ou reabilitar-me os ossos.» Tantos anos depois de 1975, a página 37 deste livro proclama uma razão: o escritor repudia «o epitáfio com que durante muitos anos o sepultaram em vida». O tempo veio ao encontro dessa profecia, este livro é a prova.
(Editora: Sulfúria Edições, Capa, Paginação e Design: Margarida Mendes, Nota do editor: Vítor Rodrigues, Prefácio: Luís Santos)