Uma proposta de intervenção para a antiga fábrica da Secla

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Gazeta das Caldas - SECLA
Detalhe da fachada do edifício antigo, na maquete final à escala de 1/200 aqui sem o telhado. A fachada seria reconstruída, revendo apenas o desenho dos vãos, mantendo a largura, mas com uma altura que acompanha ambos os andares. Na proposta, este edifício é usado para lojas no rés-do-chão, e escritórios no primeiro piso.

Escrevo este artigo com base na tese “A Regeneração urbana através da reconversão de antigos espaços industriais – uma intervenção na antiga fábrica da Secla nas Caldas da Rainha”, com a qual obtive o grau de mestre no curso de Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, pretendendo abrir novas linhas de pensamento para a discussão sobre o futuro, cada vez mais precário, da fábrica 1 da SECLA. A minha tese teve como objecto de estudo a fábrica 1 da SECLA, baseando-se em redor de toda a história da marca, o seu impacto na cidade, e a própria fábrica dentro dum panorama da reabilitação e salvaguarda do património, culminando na minha proposta de projecto.

Por: João Romão*

Gazeta das Caldas - SECLACom a mudança dos tempos e a evolução das cidades, estes espaços industriais que em tempos foram uma força motriz da cidade, são hoje abandonados e destruídos por diversas razões. Podem ter perdido a utilidade com a modernização da produção ou então foram absorvidas pela cidade que cresceu e reclama este espaço. Ainda assim, mesmo vazios, os espaços industriais são um elemento que guarda um passado e uma memória, não só da cultura fabril, mas também da cidade e população. A antiga fábrica de cerâmica da SECLA – Sociedade de Exportação e Cerâmica Lda., Apesar do seu aspecto delapidado, foi em tempos uma das maiores fábricas de cerâmica nas Caldas da Rainha e até do país, com um forte carácter experimentalista que viria a modificar o panorama nacional de cerâmica enquanto forma de arte. Esta Arquitectura Industrial deve ser tomada enquanto Património e com a sua reconversão, dando-lhe um novo programa e utilidade, regenerar a área envolvente e criar novas relações de vivência na cidade e no espaço público.
A ideia de património e de salvaguardar testemunhos de outra época surge como uma medida resultante de um distanciamento do passado com a actualidade que vivemos. A fábrica enquanto peça de arquitectura industrial é uma das tipologias que mais facilmente é descaracterizada e diminuída de autenticidade, facilmente demolida sem reflexão do seu lugar passado na sociedade e cidade onde se localiza. Deve haver um momento em que o antigo edificado é visto como herança da população, oferecendo uma janela a outro tempo, e não apenas como propriedade de uma entidade singular.
A arquitectura industrial é, de forma básica, constituída por um edificado destinado à produção em série, resultado da revolução industrial. O espaço fabril demarcou-se por ser uma rutura na arquitectura, não só na estética e no começo do uso de novas materialidades como o ferro e aço, e mais tarde o betão, mas pela própria organização funcionalista dos espaços de produção fomentada por um novo programa. Este funcionalismo procura dar uma resposta da forma mais eficiente e ágil ao circuito produtivo, revelando uma dinâmica espacial inseparável do programa a que responde. Para tal, é normal encontrarmos, como é exemplo a fábrica da SECLA, uma estrutura em betão com uma malha regular que potencia a libertação de um interior vasto e com uma boa iluminação pela fachada e tecto, obtendo espaços adaptáveis a mudanças na evolução da linha de produção, assim como oferece a liberdade para acomodar novos usos. Desta forma é possível uma facilidade de adaptabilidade e modularidade da construção, que é caracterizada por espaços amplos flexíveis para receber diferentes ocupações e que revelam um forte valor evocativo, social e iconográfico. Esta flexibilidade na concepção do edificado contribui para uma maior longevidade na sua utilização e para uma potencialidade na polivalência de funções e usos, o que se mostra indispensável na sociedade actual assim como na persistência da arquitectura. Assim, mesmo com novos programas, é dada a continuação de um legado industrial, se mantido o aspecto estético, exterior e interior, fabril, que preservará a sua identidade original. Desta forma o edificado mantém enquanto memória a sua imagem e identidade passada de um lugar industrial que oferece momentos excitantes e inovativos de concepção. Movimentos como a adição ou subtracção que podem voltar a trazer o edificado para a contemporaneidade, em si uma acção contemporânea.
De modo a salvaguardar exemplares de Património Industrial, é necessário conseguir um uso que faça sentido à cidade e à própria arquitectura. As fábricas, enquanto peças com um valor documental e cultural a preservar, e encontrando-se agora num ambiente e lugar dentro da cidade para lá do originalmente concebido, não recebem de novo o uso fabril original, mas antes novos programas que devolvem a vivência destes espaços, continuando a preservar a memória existente.
O caso em estudo da fábrica 1 da SECLA, tem o seu início de construção em finais da década de 1940, nesse período, com uma dimensão reduzida, não apresentando uma idealização de uma linha de produção complexa, nem estuda a possibilidade modular de crescimento. Apesar da construção pontual de novos anexos consoante a necessidade nos anos seguintes, apenas vemos o planeamento do crescimento espacial, promovido pela necessidade de aumento da capacidade de produção, com uma nova construção de estrutura modular na década de 60 e 70. A fábrica em si apresenta um valor arquitectónico relativo, mas torna-se relevante a sua preservação pela sua memória associada, o que produziu e o seu significado na cidade e na cerâmica nacional.
A SECLA demarcou-se enquanto produtora de cerâmica ao focar-se desde o seu início em louça utilitária, mas com espaço para ser experimentalista no seu desenho. Ao contrário de outras fábricas cerâmicas típicas das Caldas, não se procurava uma temática e desenho naturalista na loiça produzida, apostando antes num padrão internacional moderno. Estas peças de louça eram de carácter muito mais funcional com um design mais estilizado e moderno, onde a natureza surgia apenas como apontamento. Outro ponto que destacou a SECLA foi, a partir dos anos 50, a exploração de um novo rumo criativo com alojamento de artistas plásticos convidados a criarem peças únicas, assim como um desenvolvimento da expressão artística mais apurada na linha de produção. A esta secção na fábrica, nomeada de ‘Estúdio SECLA’, a Cerâmica foi utilizada como expressão artística individual, um pouco em seguimento da ideia de Arts and Crafts, que viria a oferecer um maior destaque e prestígio à marca. O Estúdio viria a ser visto como um protótipo nacional, inovador para a renovação e modernidade da cerâmica nacional, levando a indústria a atentar ao papel do artista na criação de novas peças.
No seu auge, a SECLA viria a empregar mais de 700 pessoas e a produzir 12 milhões de peças anualmente. Mas volvido o ano de 2008 a marca entra em falência encerrando assim uma das maiores fábricas de cerâmica do país, tornada uma referência histórica e artística na cerâmica a nível nacional e internacional.

UM ESPAÇO COM MAIS PESSOAS, MAIS AGRADÁVEL E MAIS ÚTIL

Corte pelas naves de produção da Fábrica, na maquete a 1/200, onde se pode ver o rés-do-chão usado para espaços dedicados a start-ups e ateliers, assim como ambos os intervalos na laje, onde antigamente estariam os fornos elétricos, mantidos pela dinâmica e luz natural que oferecem ao espaço interior. Já o piso 1 é usado como espaço público, com apenas uma das naves mantida com cobertura e usada como espaço de co-working.
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A fachada curva da fábrica, revestida em peças cerâmicas criando um desenho dinâmico e iconográfico.
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Visualização de um dos intervalos na laje, onde é proposto um jardim com entrada de luz natural nos espaços de trabalho
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Interior da nave de produção com destaque ao espaço de co-working

A minha proposta apresentada em tese, surge com o reaproveitamento da Fábrica, que oferece uma base facilmente modificável e reaproveitada, e a construção de um edificado novo, criando um conjunto marcante e iconográfico, com a consequente consolidação do quarteirão. Esta regeneração urbana remete a um intuito de atrair mais pessoas a viver este espaço tornando-o mais agradável e útil, ancorado na reconversão e adaptação do espaço para novos usos que promovem a atracção de um novo público. Estes usos passam por tornar a fábrica em espaços expositivos e artísticos, ateliers e espaços de co-working. Isto com a ideia de promover uma ligação, não só à forte história artística das Caldas da Rainha, principalmente a cerâmica, mas também às novas vertentes que se apresentam vindas da ESAD.
A fábrica e a sua zona circundante apresentam mais valias para uma intervenção desta génese, assim como problemas que podem ser resolvidas da forma correcta. O quarteirão e zona circundante onde se encontra a fábrica é uma zona de fraca passagem pedonal, apesar da proximidade com pontos de interesse público com mais visitantes, como o Parque D. Carlos I e o centro comercial La Vie. Ainda assim a passagem por meio automóvel é de grande afluência e acessibilidade, visto apresentar um eixo principal enquanto entrada Sul das Caldas da Rainha. Pretendo com a minha proposta trazer a implementação de novos trabalhadores e artistas que irão dar uma vivência fixa ao local, para além de oferecer valências expositivas, museológicas e proporcionar eventos, que trará visitantes ao espaço. Estes novos habitantes do espaço levam a uma maior confluência à zona em redor, favorecendo a sua imagem e com o tempo influenciar um investimento na zona, levando a uma melhor oferta de construções e de espaço público.
Dentro das possibilidades moldáveis, sendo um projecto de tese, de modo a favorecer o melhor aproveitamento do quarteirão, a intervenção contempla a demolição de algum edificado pré-existente fora da fábrica, permitindo a melhor acessibilidade e abertura à cidade. Assim é construída uma praça de entrada que, associada a uma comunicação entre a pré-existência e o novo auditório proposto, convida à entrada na área intervencionada. Também tendo em conta o melhoramento de espaço público da área, em específico da Fábrica, segmentos do edificado fabril são demolidos ou parcialmente retirados, para criar um atravessamento unicamente pedonal pelo interior do quarteirão transitando pelo piso 1 da zona de produção. Este atravessamento interior permite uma passagem desassociada do trânsito automóvel que dará continuação a uma proposta de ligação directa e rápida da ESAD a pontos de interesse das Caldas da Rainha.
A reconversão da fábrica surge pela potencial reutilização dos seus espaços interiores, principalmente as amplas naves de produção apenas pontuadas pelos pilares da estrutura em betão armado, que oferecem uma liberdade a novos usos. Recorrendo à modernização do espaço, em termos de conforto ambiental e uma nova organização do espaço, oferece uma facilidade de inserção de novos programas. De modo a celebrar e memorizar o período e concepção industrial, a estrutura em betão armado pilar-viga, assim como as asnas que demarcam o piso 1, são mantidas, mesmo deixando de ter utilização em certos pontos. Com esta preservação da estrutura, enquanto peças de valor memorial, ganha um valor de presença no espaço, levando à sua demarcação na criação de uma nova arquitectura.

 

A IMPORTÂNCIA DO USO DA CERÂMICA

Também o uso da cerâmica, reforçando a identidade passada da marca da SECLA, foi extensivamente usada no projecto enquanto material de revestimento e criação de uma segunda pele na fachada. Com uma presença em todo a proposta de projecto, o destaque na sua utilização é a grande fachada curva do alçado principal original, na Rua Fernando Ponte e Sousa. O uso da cerâmica na proposta surge pela criação de uma peça criada a partir do estudo do catálogo de azulejaria da SECLA pegando no padrão criado pela repetição do mais conhecido azulejo de 5×5, que com a sua repetição em conjunto com variações, permite a criação e manipulação de padrões tridimensionais, conseguindo uma fluidez e imagem característica ao projecto. Com esta segunda pele, é possível conciliar a extensa fachada, tornando-a um objecto iconográfico em si mesma.
A base programática do projecto de reconversão é de oferecer um espaço de co-working e de centro de desenvolvimento de startups e pequenas empresas. O espaço amplo de nível térreo da zona de produção da Fábrica é assim organizado por espaços open-space que possibilitam uma diferenciação de áreas de trabalho. Estas áreas de trabalho dividem-se em áreas de co-working e co-studying, “contentores” e ateliers. Os espaços de co-working são localizados, para além do nível térreo, na nave preservada. Concebidos para estimular a produção de trabalho com mesas largas e estantes com cacifos integrados, direccionados a pessoas cujo trabalho se encontra apenas num portátil. Os “contentores” são concebidos como salas que oferecem um espaço que pode ser encerrado para a inserção de empresas e start-ups. Estes “contentores” são equipados com zonas de trabalho, com mesa e estantes, e alguns com uma zona de estar e reunião. A terceira valência de espaço de trabalho são os ateliers, salas mais amplas que oferecem um espaço livre à interpretação do utilizador, concebidas para trabalhos artísticos. De modo a oferecer um espaço de reunião e apresentações privadas, necessárias para as empresas e start-ups, são associadas salas para o efeito no piso 1 da nova construção anexada à nave preservada. Já no piso térreo foi construído de raiz um espaço de refeitório e cafetaria que permite uma habitabilidade do espaço total da Fábrica.
Por todo o complexo é concedida a existência de espaços verdes, que propiciam uma melhor e mais agradável vivência do espaço público. Dentro deste conjunto de espaços verdes, dois são condicionados à utilização dos utilizadores dos espaços de trabalho, visando o seu melhor disfruto e contacto com a natureza. É criado um espaço verde no piso térreo com presença a grande parte dos espaços de trabalho, que aproveita o maior vazado presente na laje original do piso 1 das naves e propicia uma situação de comunicação e interacção em diferentes níveis com a vegetação colocada. O outro espaço verde é criado em associação à nova extensão da Fábrica tendo em conta aberturas zenitais com a zona de cafetaria do piso abaixo, permitindo uma permeabilidade de luz entre níveis.
De modo a permite a reunião de um maior número de pessoas, assim como possibilitar a realização de actividades que necessitam de um maior espaço, foi criado um espaço polivalente. Esta sala é uma adição nova à estrutura pré-existente, semi-enterrada de forma a contemplar a existência de uma grande escadaria exterior de ligação da laje superior ao piso térreo.
Já o edificado mais antigo do complexo industrial, com frente para a Rua São João de Deus, e onde víamos em grandes letras o nome SECLA, obteve uma reformulação do alçado de modo a conseguir uma coerência na sua continuidade. No seu interior, no piso térreo, obtemos diferentes pontos de entrada para quatro espaços comerciais. Já no piso 1, com ligação ao espaço de co-working da nave de produção, foram colocados escritórios de administração do complexo de trabalho.
De forma independente à pré-existência, foram criados outros dois edifícios que fornecem um uso apelativo à sua visita para lá do trabalho. Um primeiro edifício é criado segundo uma implementação pré-existente, com uma principal função enquanto espaço expositivo e museológico centrado na exposição de peças da SECLA e em novas artes. O segundo edifício é um auditório, caracterizado como o mais alto edifício dentro da proposta, e que é, devido ao contacto com a Avenida Dr. Manuel Figueira Freire da Câmara, o ponto de destaque que convida o interesse à visita e entrada na área da Fábrica. Em comunicação com o edifício antigo da Fábrica é aberta uma praça que dá entrada e passagem a outros momentos da reconversão.

“Quando a fábrica for demolida, e já não estiver entre nós quem lá trabalhou, o que restará para nos contar esta história?”

Esta exposição sobre outra visão do que é possível com a Fábrica 1 da SECLA vem num momento em que devemos criar uma ideia crítica do que se vai criar lá. Existe hoje uma forte tendência a esquecer o que realmente é o nosso património e o que tem valor para a posteridade, perseguindo em revés um ganho mais curto, mas rápido e fácil. Esta ideia de que o que é hoje desprovido de uso, depois de décadas de vida fulgurante, pode ser apagado do nosso olhar por apenas vermos uma nódoa, está profundamente errada. Não apagamos só uma ruína que ninguém quis cuidar, mas também apagamos ao mesmo tempo um pedaço da memória da cidade e da sua população. Quando a fábrica for demolida, e já não estiver entre nós quem lá trabalhou, o que restará para nos contar esta história? Não é difícil apagar ou diminuir o passado. Basta tomar uma má decisão, ponderada ou não, e deixar prevalecer o desconhecimento e desinteresse. As Caldas da Rainha precisa antes de se tornar num pólo apelativo ao empreendorismo e às pessoas, principalmente aos jovens, que queiram um sítio para se fixar e criar a sua própria marca e o seu futuro.

* Arquitecto

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