Uma questão de espaço

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Gazeta das Caldas

Devia ter escrito esta crónica há mais tempo. A urgência impôs que dedicasse atenção a outros temas, tais como pianistas, violência doméstica, desertores, arte de rua, epígrafes, nefelibatas, cães, peças teatrais, águas barrentas, escritores malditos, lugares secretos, parques públicos, comércio tradicional, pequenos fascistas, natais dos pobres, cultura, coisas assim. Mas agora quero falar do que realmente importa, impõe-me o tempo que fale do espaço. Deste espaço comum, do espaço que cada uma das nossas vidas privadas partilha publicamente.
Há muito que venho constatando a estranha relação que mantemos com o espaço, uma relação de distância e de desapego. A pergunta é: o que sabemos dos lugares onde estamos? Há 19 anos a viver em Caldas da Rainha, questiono-me sobre o que saberei acerca deste concelho? Qual é a minha história deste concelho? Não me refiro exclusivamente à cidade, mas ao espaço que a envolve e que de algum modo lhe confere sentido. Saímos daqui para ir à Foz ver o mar, frequentamos um restaurante numa aldeia perto, com boa vontade talvez nos aventuremos numa caminhada por localidades com nomes estranhos, mas pouco mais nos atrai do que se estende para lá do centro onde as nossas vidas se cumprem.
Por vezes esse centro é invadido por estranhos, vizinhos de aldeias vizinhas, gente que dizemos vinda de fora como se não fosse a nossa gente. É esquisito observar aos domingos no shopping ou numa qualquer festa popular a distância que separa os que aqui vivem dos que aqui vêm, como se não fôssemos todos daqui.
A minha vida tem-se cumprido em ciclos. De 17 anos na terra natal, até ir estudar para fora, guardo uma infância livre, um rio onde era possível mergulhar, açudes, pinhais, eucaliptais, olivais, pomares onde era possível sonhar. De Lisboa, onde me formei, não guardo nada. Aprendi que a urbanidade pode revelar-se de uma tacanhez insuportável. Onde quer que se encontre um homem elege seus redutos, mas ninguém pode negar o clima calculista, arrivista e profundamente hipócrita que paira sobre a capital do país. Sinto-me relativamente bem aqui, nesta cidade. Conheço as pessoas que quero e faço por não conhecer as que não quero.
Aconteceram-me coisas determinantes neste terceiro ciclo da vida: fui pai duas vezes, tornei-me escritor, fixei-me numa actividade profissional. Vai fazer 11 anos que tenho a mesma profissão, tendo sido inúmeras as pessoas com quem me cruzei nesse contexto e já umas dezenas os colegas de trabalho. A Sofia, que está connosco há 8 anos, termina precisamente hoje um ciclo da sua vida. Cansou-se de me aturar. Neste espaço comum de que há pouco falava há pessoas com as quais passamos mais tempo do que outras. Curioso concluir que um colega de trabalho pode ser uma das pessoas com quem passamos mais tempo na vida, tornando-se desse modo parte integrante do nosso espaço. A Sofia é parte integrante do meu espaço.
Mas o quotidiano demoníaco da vida profissional não pode ser tudo, a gente tem de descobrir os campos onde à nossa volta o vento semeia papoilas. Mantenho sobre Caldas da Rainha uma opinião desinteressada: gosto de aqui dormir quando durmo, gosto de aqui despertar quando acordo. Dezassete anos, oito anos, dezanove anos. Têm sido assim os meus ciclos, como será no futuro não sei. Sei que isto não tem importância nenhuma senão para mim próprio, como todas as vidas não têm importância alguma senão para elas próprias. Para elas próprias e para os milhões de estrelas que as iluminam num universo revelador da infimidade que define cada ser humano isoladamente.
Dito isto, termina aqui este intervalo. A dor continuará com outros, nos seus próprios termos.