Alberto Costa
advogado
Durante cerca de três meses, atravessei duas vezes as Caldas durante todos os fins de semana, ao volante de um Dyane branco, de matrícula DE-48-84, um presente dos meus avós, agricultores, quando acabei o curso.
A série iniciou-se em Mafra, onde chegara um pouco antes, vindo de Lisboa. Daí saía à sexta-feira para cumprir um percurso inesquecível: Torres Vedras, Bombarral, Óbidos, Caldas, Alcobaça, Batalha e, finalmente, Leiria. Domingo, ao fim do dia, fazia o inverso. Ainda sonho frequentemente com essa inenarrável leva de travessias do Oeste que me ficou – quase diria neuronalmente – gravada. As sábias prescrições de Zeca Afonso («Só se lembra dos caminhos velhos/quem tem saudades…») não têm produzido efeito.
Os três meses incluíram Abril, Maio, Junho e a primeira parte de Julho. Até 11 de junho, esperavam-me em Leiria a São e o Jaime. A partir daí também a Joana, que ficou a ter a mesma naturalidade que a mãe.
Estávamos em 1973 e tinha sido incorporado no Curso de Oficiais Milicianos, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. O 25 de abril, que nada tinha ainda a distingui-lo nesse ano, caiu a uma quarta feira. Estou portanto seguro de que passei pelas Caldas em direcção a Leiria a 27 de Abril desse ano.
Neste 25 de Abril, cinquenta anos depois, repeti uma parte desse movimento, desta vez indo da Foz para Leiria e regressando depois à companhia da lagoa. A viagem é de há muito bem mais rápida: a auto-estrada já foi aberta ao público nos finais do governo de Guterres, no princípio deste século. Passamos agora a meio caminho entre Alcobaça e Nazaré, acrescenta-se a Marinha Grande e estamos em Leiria. Mas o tema aqui não é o que melhorámos em matéria de estradas.
Fui desta vez a Leiria a convite do Município para participar, como orador convidado, nas celebrações do 25 de abril. Pelo caminho, veio-me à memória o filme «Morangos Silvestres» (Ingmar Bergman,1957) – um filme tocante e inesquecível, mesmo quando visto na juventude, acompanhado da pessoa de que se gosta (no caso, no cinema Imperial, para os lados da Almirante Reis). Bergman, então com 38 anos, enfrentava, aqui como já em «O Sétimo Selo» (1956), problemas como a solidão e a morte. Tinha-o «conhecido» em adolescente e ficado cinéfilo: «A Fonte da Virgem» (1960) passou num barracão instalado ao fundo do jardim, em Leiria, onde vi grandes filmes.
Nos «Morangos Silvestres», um septuagenário viaja para uma cerimónia, passando por lugares que lhe são familiares, onde já viveu e que lhe trazem recordações felizes, associadas a frutos silvestres colhidos na juventude, e vai sendo atravessado por sonhos e pesadelos. A longa viagem vai-lhe dar tempo para passar em revista pessoas, relações, episódios marcantes – e repensar toda a sua vida. No regresso a casa, fatigado, adormece e sonha com um momento feliz da infância. Uma revista da especialidade diria do filme: «Morangos Silvestres» é uma visita ao passado a partir de um olhar maduro, onde a saudade da energia da juventude, das pessoas que partiram e de quando ainda se tinha para viver se juntam para trazer uma lufada de crescimento pessoal… e o peso indescritível da solidão».
Com a auto-estrada, a viagem para Leiria está curta demais para uma revisão do passado de qualquer septuagenário. Para isso, sempre seria um pouco melhor o velho trajecto de Mafra a Leiria, que até permitia colher umas flores silvestres pelo caminho, para oferecer à chegada – ou num sonho.
Sobre a oração em Leiria… é para isso que serve agora o Facebook & Cia. E quanto ao facto de não haver mais «viagens na minha terra» de julho em diante, até maio de 74, essa é uma outra história, que tem de ficar à espera de espaço. Talvez no cinquentenário.
Wikipedia: «Viagens na Minha Terra» é um livro da autoria de Almeida Garrett, obra na qual se misturam o estilo digressivo da viagem real e a narração novelesca em torno de Carlos e Joaninha. Data da 1ª ed.: 1846 ■ vistodafoz@gmail.com