Visto da Foz: “Sibi imputet”

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A propósito de candidaturas independentes e danos causados a partidos na esfera local, usei em tempos nas páginas da Gazeta uma prescrição clássica («sibi imputet») que, em versão profana, equivaleria a dizer «queixem-se de si próprios» – ou, recorrendo agora ao Google, «culpem-se a si próprios». Os idos de novembro tornam a ideia outra vez tentadora.
Tínhamos um chefe de governo – oito anos nessa posição, ex-ministro da justiça, político provado – um executivo e uma maioria absoluta monopartidária que protegiam de mudanças o nosso «sui generis» sistema autonómico de ministério público. E mais: sustentavam um olhar sobre a justiça resumido numa célebre fórmula inspirada no evangélico «a César o que é de César».
Eis que sobreveio bruscamente a queda, a chamado de uma «operação» agendada e protagonizada por procuradores.
Não duvido que só mais tarde se poderá saber e dizer o mais importante. A demissão dum primeiro-ministro e a interrupção de uma maioria absoluta, com danos reputacionais em vários tabuleiros, para não dizer mais, não são pequenos resultados, e serão confrontados nalgum momento futuro com o destino dum processo-crime instaurado – e de toda a galeria dos que se foram acumulando. Efeitos perversos são previsíveis. Mas o capítulo já vivido encerra lições.
Para o ministério público, a constituição de 1976 prescreve «responsabilidade» e «hierarquia» – e, desde 1989, também «autonomia» (esta última, aliás, não consagrada em múltiplos estados de direito democrático). Ora, no curso das coisas e na agenda legislativa levada a cabo pelos governos dos últimos anos, foi esta última dimensão a que avultou. É bem esclarecedora, para quem não seja jurista, a leitura da exposição de motivos da principal iniciativa apresentada ao parlamento, nesta matéria, por governos da responsabilidade do primeiro-ministro cessante (proposta de lei nº 147/XII). Além de se ter introduzido no ministério público a redução a duas categorias e a carreira plana que hoje existe, satisfazendo uma antiga reivindicação sindical, «visou-se primacialmente fortalecer» – cito- «a autonomia interna e externa» dessa magistratura.
Na área democrática agora directamente atingida, a poucos pareceu ser caso para drama prosseguir esse «fortalecimento», potencialmente sacrificial para a hierarquia e a responsabilidade. Mas já pairava no ar uma variante do princípio de Tchekhov: quando se exibe uma arma no primeiro acto, torna-se mais provável que ela dispare antes da peça acabar.■ vistodafoz@gmail.com

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