Rebelde e curiosa, Jesus Fernandes foi presa com 15 anos

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Para Jesus Fernandes é essencial que os jovens percebam o que é a liberdade

Há 50 anos 151 estudantes foram presos durante uma reunião. Maria Jesus Fernandes, então com 15 anos, foi um deles

O cerco ao Instituto Superior de Economia, pela polícia, fez com que a reunião promovida pelo Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa (MAEESL), para a tarde de 16 de dezembro de 1973, tivesse de ser mudada. Passada a palavra, os estudantes, com idades entre os 13 e os 18 anos, deslocaram-se para o piso-1 do Hospital de Santa Maria, onde funcionava a Associação de Estudantes de Medicina. “151 estudantes a fugir da polícia foram-se enfiar num beco, a que se acedia unicamente por uma escada”, recorda Jesus Fernandes, na altura com 15 anos e uma das estudantes que foi à reunião onde se iria discutir a situação nos liceus e escolas técnicas.
Logo que a PSP “apanhou” os jovens lá dentro isolou o Hospital, obrigando, inclusive, as pessoas que iam à visita a identificarem-se à porta. Os jovens foram presos e levados para o Governo Civil, onde os mais novos, e que ainda não tinham processo aberto pela polícia política, ficaram uma noite, tendo sido libertados às 8h00 do dia seguinte. “Éramos 51 raparigas e ficámos todas numa única cela, numas condições absolutamente execráveis”, recorda Jesus Fernandes.
O aparato levou a que se soubesse da prisão dos estudantes em protesto e as mães mandaram, às raparigas, “ao final da noite uns frangos assados e sacos de pensos higiénicos”. Ainda durante a noite, as raparigas mais velhas foram retiradas da cela e enviadas para a prisão de Caxias e aos rapazes foi rapado o cabelo, uma técnica usada pela polícia política com o intuito de os marcar, mas que acabava por “gerar simpatia e solidariedade” dos colegas.
Jesus Fernandes participava nesse dia na primeira reunião do MAEESL, mas já tinha estado em manifestações contra a guerra e na escola era usual fazerem “encontros relâmpago” de contestação, durante o intervalo maior e atrás do ginásio ou na sala dos alunos.
Depois de ter sido presa “foi pior, porque ganha-se aquela sensação de desafio: vocês prenderam-nos mas nós só estávamos a discutir o ensino, que é retrógado, e que os professores são incompetentes”, recorda, acrescentando que depois chegou a distribuir os jornais associativos à porta da escola.
“Fui uma adolescente muito rebelde e curiosa. A minha prisão, em 1973, foi o maior susto para os meus pais, pelas consequências em termos de futuro, mas não os apanhou completamente desprevenidos”, recorda. A prisão dos 151 estudantes foi lembrada na exposição “Há sempre alguém que diz não! A oposição estudantil à ditadura no ensino secundário de Lisboa (1970-1974)”, que esteve patente na Torre do Tombo entre Dezembro do ano passado e o final do mês de fevereiro.

Família católica e democrata
Proveniente de uma família católica mas profundamente democrática, Jesus Fernandes nasceu nas Caldas, mas foi para Lisboa com dois anos, onde viveu até à idade adulta.
Começou por frequentar escolas femininas até que, no então sétimo ano, passou para o liceu D. Dinis, que era misto. Era nessa escola que andava quando foi presa e, depois, foi alvo de um processo disciplinar, levantado pela escola e que iria culminar na sua expulsão, provavelmente, do ensino público. Ao mesmo tempo estava com um processo no tribunal de menores.
“Felizmente deu-se o 25 de abril e ficou tudo arquivado”, conta a atual bastonária da Ordem dos Biólogos.

Viver a revolução
A veia ativista começou muito cedo, embora com “alguma ponderação”, conta Jesus Fernandes, lembrando que em casa havia a percepção de que se tratava de um país de contrastes absolutos, embora sem politizarem a situação. “Vivíamos nos Olivais e ao lado havia bairros de barracas, era demais para não ser visível”, recorda. Para além disso, a irmã mais velha, então estudante de Medicina, estava junto ao colega e militante antifascista, Ribeiro dos Santos, na cantina da universidade, quando este foi morto pela PIDE, o que lhes deu “uma percepção ainda maior das injustiças e do estado de degradação das coisas”.
O “16 de março foi amplamente louvado, ainda mais sendo das Caldas tinha a componente afetiva”, e o 25 de abril vivido com muita intensidade, com Jesus Fernandes a apanhar, logo que pôde sair de casa, o autocarro para a baixa de Lisboa para viver a revolução.
Nos primeiros tempos de democracia, Jesus Fernandes participava nas mais diversas atividades. Passou pela associação de estudantes e militou ativamente num dos movimentos Marxistas Leninistas, durante alguns anos até ir para a universidade. Acabaria por se afastar da militância política, mantendo uma atividade associativa muito ativa.
Para a atual militante do movimento Vamos Mudar, uma das suas principais preocupações, nesta campanha eleitoral, prende-se com o voltar a colocar em cima da mesa a questão do aborto, “não para melhorar a lei que temos mas para a fazer regredir”. Defende que é preciso deixar as mulheres cuidarem do corpo delas e que é necessária uma maior igualdade e equidade entre géneros. ■

Registo policial da detenção (fonte: ANTT, PIDE-DGS-SC-SR 3529/62 PT 46)