Caldense Ana Sofia Reboleira, personalidade do ano para a Gazeta, tem-se destacado a nível internacional pelos contributos para a Ciência.
Ana Sofia Reboleira, que nasceu em 1980, nas Caldas, foi a personalidade do ano para a redação da Gazeta das Caldas. Os contributos desta caldense para a ciência, com a descoberta de novas espécies e géneros, são de relevo. O seu fascínio pelo mundo do subterrâneo, que já lhe valeu o nome de “Mulher das Cavernas”, tem-na levado a explorar grutas em todo o mundo, enfrentando o desconhecido. Venha connosco nesta entrevista da bióloga e espeleóloga à Gazeta.
Como surgiu o interesse pelo mundo subterrâneo?
Eu devia ter à volta de seis anos, quando fui visitar as grutas de Mira d’Aire com a família e fiquei absolutamente fascinada com aquele ambiente, aquelas paisagens e tudo isso. Mas depois não tinha espeleólogos na família, portanto não tinha qualquer hipótese de explorar grutas que não fosse do ponto de vista da visita turístico. Já na minha escola secundária, na Raul Proença, havia um núcleo de espeleologia e inscrevi-me e comecei a fazer formação nesta área e a explorar grutas de uma forma menos turística.
Qual a primeira gruta que visitou enquanto iniciante de espeleologia?
Foi uma cavidade no município de Penela, que é a gruta do Soprador do Carvalho, que tem 800 metros de ribeira subterrânea transitável, onde podemos andar dentro do rio. Se já estava fascinada pelo mundo subterrâneo, aqui tornou-se bem mais agudo!
E, curiosamente, viria a descrever, anos mais tarde, várias espécies novas para a ciência dessa cavidade, onde eu continuo a trabalhar.
Houve um momento em que sentiu que era isto que queria fazer, em termos profissionais?
A vida não é uma linha reta, há sempre várias nuances, várias curvas e o caminho faz-se caminhando. Fiquei muito fascinada logo desde o primeiro contacto. Depois houve uma altura em que queria ir para Geologia para estudar a formação das grutas e isso foi dominando durante uns anos, mas, na secundária, comecei a estudar Biologia e apaixonei-me perdidamente, tanto que acabei por decidir estudar Biologia, mas sempre com esse fascínio pelo subterrâneo.
Foi quando fui para a Universidade de Aveiro que descobri que havia uns animais que vivem exclusivamente no meio subterrâneo. Aí achei que era exatamente isto que eu queria estudar. Só que na altura não havia ninguém em Portugal a estudar essa área e, para aprender, é preciso alguém que oriente. Conheci, num congresso, o professor Pedro Oromi, que viria a ser meu coordenador de doutoramento. Estava na Universidade de La Laguna, em Espanha, para onde fui estagiar no último ano de licenciatura. Foi aí que dei os meus primeiros passos na biologia subterrânea. Depois, regressei a Portugal, fiz um mestrado em que estudei os escaravelhos cavernícolas do maciço calcário estremenho, que é conhecido popularmente como Serras de Aire e Candeeiros e fiz um doutoramento em Biodiversidade e Conservação da Fauna Cavernícola de Portugal continental. Logo no meu mestrado descobri duas espécies novas para a ciência na Serra de Aire e Candeeiros e no doutoramento, ampliando o estudo à escala de Portugal continental, houve muito mais descobertas, que continuam a acontecer.
Quais as quatro novas espécies que descobriu no Oeste?
Temos uma que é nova para a ciência e que já está descrita desde 2015, quase há uma década, que só existe na gruta de Salir do Porto, nas Caldas. Chama-se Metatrichoniscoides Salirensis, que é um bicho de conta que terá à volta de dois milímetros de comprimento e cujo único habitat, a nível mundial é aquela cavidade no município das Caldas. Isto naturalmente acarreta grandes responsabilidades do ponto de vista da conservação da biodiversidade porque estamos a falar de uma espécie que existe única exclusivamente aqui. E que se alguma coisa a acontecer àquela cavidade o mais provável é a espécie extinguir-se.
Permita-nos a interrupção: que comentário lhe merece a exploração e conservação, ou falta dela, da gruta de Salir do Porto? Qual a sua visão para aquele espaço?
Eu prefiro falar de visão de futuro, em vez de perspectivas passadas. A gruta de Salir do Porto é uma cavidade extraordinariamente interessante do ponto de vista estético, ou seja, a própria paisagem tem um valor estético bastante grande. Terá, com certeza, um valor mineralógico elevadíssimo, que nunca foi estudado por especialistas dessa área, e, do ponto de vista da biologia, tem espécies endémicas, únicas daquela gruta e de nenhuma outra, portanto, como habitat prioritário para a conservação é um local de importância mundial, porque é o único sítio onde existe aquela espécie. Isso, só por si, merece a sua classificação como habitat prioritário. E temos, também, outra espécie nova desse local, que ainda não está descrita, mas que está nos nossos planos em breve descrevê-la. Não será uma única espécie, teremos mais.
Voltemos às quatro do Oeste…
As características comuns a estes animais é que são cegos e despigmentados, como consequência de viverem num habitat sem luz e, para compensar esta perda sensorial, têm corpos estilizados, patas compridas, antenas muito longas e toda uma grande parafernália de quimiorecetores, estruturas com pêlos e poros para sentir as vibrações do ar e receber informação química do ambiente, porque têm que fazer a sua vida no escuro, onde a visão não tem papel. O primeiro a ser descrito aqui do Oeste foi o escaravelho cavernícola, endémico de uma gruta do Montejunto, que é o Trechus Tatai, que descrevemos em 2010 e que continuamos a trabalhar, agora do ponto de vista molecular, porque estamos a reconstruir a história evolutiva desse animal, e de outros também.
Depois temos um pseudo escorpião cavernícola, que é o Roncocreagris Occidentalis, que foi descoberto em grutas do Montejunto e Planalto das Cezaredas. E temos uma outra espécie de bicho de conta que é o Miktoniscus Longispina, descoberta numa gruta do planalto das Cezaredas. Todas decorrem do meu trabalho de doutoramento e existem novas espécies da zona que ainda estamos a trabalhar e que a seu tempo verão a luz do dia.
Além da curiosidade, o facto de trabalhar em ecossistemas em muitos casos desconhecidos nunca lhe causa medo?
Tenho três grandes medos, que penso que são transversais a todos os espeleólogos: cair, que nos caia alguma coisa em cima, nomeadamente o tecto ou um bloco grande, e as inundações, que são coisas repentinas e que são provavelmente a principal causa de morte dos espeleólogos a nível internacional. Mas, se ninguém conhece, alguém tem que lá ir!
No trabalho de campo, quais as principais dificuldades?
O trabalho de campo é uma parte ínfima daquilo que fazemos. Cada vez que vamos a uma gruta e encontramos um animal novo, depois são anos de estudo e horas infindáveis a estudá-lo. Mas, além de ser bióloga, sou espeleóloga e também gosto de grutas grandes, das maiores, das mais profundas, sendo que a exploração a esse nível tem uma parte técnica muito grande. O meu objetivo é primordialmente o estudo destes ecossistemas, mas para os estudar, nomeadamente os muito profundos, é preciso chegarmos lá, porque, por exemplo, na exploração extra planetária fazemos naves espaciais e os humanos vão lá dentro, para chegar ao fundo das Fossas Marianas construímos submarinos e os humanos vão lá dentro, mas para explorar grutas não há outra forma a não ser irmos nós. Temos que andar pendurados em muitas zonas e andar dentro da água. Se, aqui em Portugal as temperaturas são bastante cómodas nas grutas, com uma variação entre os 11º e os 21,5º, sendo que a média deve andar nos 15º – que são temperaturas bastante cómodas para um ambiente com 100% de humidade -, se nós formos, por exemplo, para a gruta mais profunda do mundo a temperatura são dois ou três graus com 100% de humidade e sempre molhados. Isto exige um esforço físico brutal. E vivemos em condições de conforto muito limitadas. A exploração e o estudo destas cavidades, quer para a própria exploração do sítio, quer para a recolha de amostras, sejam biológicas, geológicas ou o que for, implica passar muito tempo dentro destes locais. Chegamos a passar duas a três semanas com estas condições. Depois, são predominantemente grutas verticais. Para baixo, a gravidade ajuda, mas, para cima, temos que nos carregar a nós e tudo aquilo que precisamos para trabalhar e sobreviver.
Como é o seu dia-dia numa semana dita normal?
Como professora universitária tenho 50% de docência e 50% de investigação e, portanto, tenho que dividir o tempo entre as minhas obrigações docentes e a coordenação de um grupo de investigação com dez pessoas e um laboratório. Há ainda as questões administrativas relacionadas com toda esta atividade e as saídas de campo.
Que relação mantém com as Caldas?
Eu sou das Caldas, nasci e vivi nas Caldas até aos 17 anos, quando fui estudar para a Universidade de Aveiro. Voltei a viver cá em 2020, onde continuo. Sou das Caldas e acho que é uma boa cidade para viver, que tem muito por onde melhorar e espero também poder contribuir. Tenho a minha família e amigos aqui, Caldas é o sítio a que chamo casa.
Como foi ser vice-presidente da Sociedade Internacional de Biologia Subterrânea (ISSB)?
Foi interessante. Pertenci à junta diretiva durante três mandatos de dois anos cada, que é o máximo. É a organização onde está quem trabalha em biologia subterrânea em todo o mundo e é relativamente pequena, tem menos de 200 membros, mas a área da investigação também não é assim tão grande, do ponto de vista de pessoas a trabalhar. Nos últimos dez anos tem havido uma explosão em termos de interesse e de número de publicações, com novas gerações, pelo que penso que é uma tendência que se irá evidenciar nos próximos anos, porque o que nós temos debaixo da terra tem uma importância absolutamente vital para todos os processos biológicos, ecológicos e mesmo físicos no planeta. É inevitável o interesse pelo estudo deste grande reservatório de água, nutrientes e de biodiversidade.
Já exploramos o espaço, mas ainda nos falta conhecer o nosso planeta…
Sim, há quem chame às grutas o sétimo continente. É o ecossistema mais desconhecido do nosso planeta, sem dúvida. Nós conhecemos mais sobre a superfície da lua, do que sobre o que está debaixo dos nossos pés.
Algumas memórias das experiências que tem tido em universidades de todo o mundo?
Antes de trabalhar numa universidade de Lisboa era professora na Universidade de Copenhaga, na Dinamarca e, naturalmente, toda aquela cultura escandinava influencia bastante a minha forma de trabalhar. Depois, passei por várias instituições, com temporadas em diferentes países e foi uma oportunidade única de aprender imenso em todos estes locais com o intercâmbio com os cientistas nestas instituições. Foi fundamental como aprendizagem.
Sente que o seu trabalho tem também conseguido atrair mais pessoas para este mundo?
Quando eu comecei a trabalhar não havia ninguém em Portugal que trabalhasse nesta área, se houvesse, provavelmente teria ido trabalhar com essa pessoa, pelo que acho natural que as novas gerações o façam. Temos vários alunos a trabalhar na área e espero que isso se reflita na qualidade dos trabalhos futuros e no aumento do conhecimento que vamos ter sobre estes meios. Tenho alunos muito bons e muito competentes que darão passos muito seguros no futuro. Por outro lado, a divulgação do trabalho e esta área tem sempre algum atrativo, por não ser tão comum, ainda, o que também cativa alguns alunos. Alguns vêm pela aventura da espeleologia e depois percebem que isto é biologia, apenas vamos às grutas para recolher os animais para trabalhar. Nem todo o trabalho que fazemos inclui ir ao meio subterrâneo. Da altura que estudei para agora, noto que esta geração é completamente diferente da minha, é uma geração online, onde as redes sociais têm um papel muito importante na divulgação. Quando comecei a fazer espelelogia, as paisagens que eu via, era eu que via, com os meus amigos que lá estavam e nós é que partilhavamos as histórias. Atualmente não, as pessoas ainda estão a sair da gruta e já estão a publicar essas fotos e isso também aumenta o atrativo, do ponto de vista estético, para estas áreas.
Projetos para o futuro?
Foi-nos concedido um projeto de investigação através da Fundação para a Ciência e Tecnologia para estudar a fauna cavernícola do Algarve, que é atualmente a zona mais rica do país em termos de biodiversidade subterrânea, porque encontrámos uma gruta que colocou Portugal na lista dos hotspots mundiais de biodiversidade cavernícola, ou seja, tem números extraordinários de espécies animais adaptadas à vida nas grutas e é um sítio prioritário e de grande interesse. O projeto irá durar três anos e esperamos aumentar ainda mais a biodiversidade, que já é rica, o que é uma tendência, os sítios ricos em biodiversidade tendem a ser cada vez mais ricos e isto é tudo proporcional ao trabalho que se realiza nos locais, ou seja, quanto mais trabalharmos mais descobertas fazemos.
Assim sendo, não deveria Salir do Porto ser alvo de mais estudo e investimento e fazer o caminho?
Sim, claro! ■