Nas ruas da cidade a passagem do camião do lixo é coisa que se prefere evitar e que se deseja rápida. Isto faz barulho e cheira mal. Os condutores procuram contorná-lo para não ter de esperar. E as pessoas afastam-se apressadas. Mas quem trabalha nesta actividade fá-lo durante sete horas seguidas, pendurado no camião cujas entranhas compactam toneladas de resíduos.
Dir-se-ía um aparelho digestivo gigante que regurgita um cheiro ácido que envolve os homens que vão pendurados na traseira do monstro.
Gazeta das Caldas acompanhou, numa madrugada chuvosa de Novembro, uma brigada dos SMAS na recolha do lixo.
São cinco e meia da manhã e os primeiros homens chegam aos armazéns da Câmara, na antiga Mattel. Os aguaceiros que durante a noite fustigaram a cidade deram agora lugar a uma chuva miudinha, pegajosa, irritante. O ar está saturado de água, tudo molhado à volta e os homens aquecem-se na cabine dos camiões do lixo.
São três equipas que vão partir agora: duas para fazer as rotas da cidade e outra para as aldeias. O Scania que nos dá boleia vai fazer o centro das Caldas, a Encosta do Sol, a Crocha e os Casais de Santa Rita. É conduzido por Ilídio Sancheira, que chefia uma brigada com dois assistentes operacionais: Ângelo Gaspar e José Ferreira.
A primeira paragem é precisamente na Praça da Fruta, onde, apesar de ainda ser noite escura, já lá estão os primeiros vendedores a montar as bancas. Os primeiros contentores a serem despejados no camião do lixo são designados por “subterrâneos” porque estão enterrados no solo, subindo à superfície através de um sistema hidráulico. Os homens ligam um cabo que injecta óleo num elevador que faz subir os contentores.
Ilídio Sancheira e Ângelo Gaspar tratam destes enquanto José Ferreira vai ao “Beco do Teixeira” buscar dois contentores que arrasta pela rua das Montras até ao camião. “Isto fica muito longe. Deviam arranjar outro sítio. Temos que andar mais de 200 metros a acartar com isto”, queixa-se José Ferreira.
O camião sobe agora até ao Chafariz das 5 Bicas e entra no hospital. Contorna as urgências e vai recolher os contentores ao fundo do parque de estacionamento. O motorista ziguezagueia pelos carros mal estacionados que, aquela hora, ainda não são muitos. “Já me aconteceu não conseguir chegar lá por causa dos carros e ter de cá voltar depois”.
“O PIOR É QUANDO CHOVE”
O que mais impressiona é a destreza com que Ilídio Sancheira manobra o camião. Ao longo de toda a manhã é vê-lo passar à tangente por entre carros em ruas estreitas, manobrar em espaços apertados e conduzir de marcha atrás com a maior das ligeirezas quando é necessário aceder a sentidos proibidos, a ruas em obras ou becos sem saída. “São 35 anos disto”, explica o motorista. “Já estou habituado. O pior nisto é quando chove. Os espelhos retrovisores não têm desembaciador e ficam molhados. E depois os reflexos das luzes dos carros e dos candeeiros, as poças de água, a chuva por todo o lado… não se vê nada. Tenho que ir com mais cuidado para não bater e para ver os homens lá atrás”.
A chuva é também uma das maiores dificuldades que José e Ângelo apontam nesta profissão. Mas não é a primeira. Para estes homens, o pior no seu trabalho é a falta de civismo das pessoas, que muitas vezes deixam os sacos do lixo fora dos contentores, obrigando-os a apanharem-nos com as mãos, por vezes já com o plástico rasgado pelos cães. “Outra vezes deixam aí cartão e papéis, móveis, tudo ao lado dos contentores”, diz Ângelo. O motorista confirma: “até dá vontade de lá deixar tudo no chão, mas não pode ser porque nós somos o espelho da cidade”.
Outro dos problemas são as pessoas que enchem os contentores com entulho. Terra, pedras, tijolos. “Outro dia nas Boisias havia um contentor tão carregado que até as rodas arquearam. Às vezes nem o camião consegue levantá-los e temos que mandar depois uma grua”. E Ilídio conclui em jeito de desabafo: “as pessoas não têm consciência”.
UM BRAÇO PARTIDO
São sete da manhã e ainda é de noite. Na rua Leão Azedo há pessoas apressadas para apanharem a rápida para Lisboa. Ângelo e José elevam mais três contentores subterrâneos, mas ao despejar o segundo, parte-se um braço do mecanismo traseiro do camião. Vai ser necessário voltar a São Cristóvão para trocar de viatura. Mas há rituais que são para cumprir: os dois homens do lixo entram no Café Capristanos para tomar o seu café. Até agora ainda não tiveram um momento de repouso e impressiona a velocidade com que vazam contentores para o camião.
Ir e voltar às oficinas da Câmara demora meia hora e o serviço fica irremediavelmente atrasado. Ilídio Sancheira explica que há a preocupação de limpar o centro da cidade antes que o trânsito comece a ficar mais intenso. Até então quase não havia carros nas ruas.
São 7h40. O céu clareou. A chuva desapareceu. As nuvens deram uma trégua e até se vislumbra algum azul no céu, mas subitamente o tempo muda e agora uma névoa espessa cobre a cidade, trazendo consigo uma humidade espessa que quase se corta à faca.
A tarefa prossegue. Estamos na zona do tribunal e do Hotel Cristal, voltamos à Rua Heróis da Grande Guerra, passamos pelo Largo da Rainha, subimos ao Bairro Azul, entramos na avenida da estação, passamos pelo Pingo Doce, voltamos à avenida, “limpamos” toda a zona das ruas Raul Proença, Fonte do Pinheiro e rua da Estação. Passamos pelo Centro de Saúde… As voltas são mais que muitas e, por vezes, passa-se três vezes pelo mesmo sítio por causa dos sentidos proibidos.
BASTAM 20 SEGUNDOS
São 9h00 e o camião está cheio. Está na hora de ir às Gaeiras despejá-lo. Um funcionário da Valorsul pesa o veículo à entrada e à saída e ficamos a saber que lá ficaram oito toneladas de lixo, perdão, de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU). A partir daqui é com a Valorsul, a empresa que transportará o lixo para o aterro sanitário do Vilar (Cadaval).
Voltamos à cidade. A meio da manhã já o nevoeiro se dissipou e felizmente brilha um Sol morno que se impõe à humidade do ar. O camião do senhor Ilídio sobe agora a Encosta do Sol onde vai percorrer todas as ruas num percurso labiríntico. Com pouco trânsito, o trabalho faz-se rápido, dir-se-ia mesmo, num ritmo frenético. Cronometramos o tempo que leva a despejar um contentor entre o momento em que o camião se imobiliza e volta a arrancar. Na maioria das vezes basta 20 segundos.
José Ferreira e Ângelo Gaspar trabalham rápido. O oleado que vestem está agora mais sujo, mas, pelo menos, mais seco. Os gestos são coordenados a movimentar os contentores e a içá-los para o monstro barulhento, retirando-os imediatamente para os devolver ao seu lugar na rua.
Um camião do lixo gasta cerca de 80 litros de gasóleo aos 100. É preciso ver que, quando está parado, continua a gastar imenso porque está a compactar o lixo que lhe é depositado no ventre. Entre o pára-arranca e as voltinhas pelas ruas da cidade, em média, percorre 60 quilómetros num só turno.
“Apertam o nariz e voltam a cara para o lado”
Nas ruas da cidade a passagem do camião do lixo é coisa que se prefere evitar e que se deseja rápida. Isto faz barulho e cheira mal. Os condutores procuram contorná-lo para não ter de esperar. E as pessoas afastam-se apressadas.
“Algumas apertam o nariz e voltam a cara para o lado”, diz José Ferreira. Um trabalho destes, indispensável, é mal amado. Ganha-se o ordenado mínimo mais o subsídio de turno. Leva-se pouco mais de 700 euros para casa no fim do mês.
Ainda assim, Ângelo Gaspar diz que gosta da sua profissão. Tem 39 anos e começou a trabalhar na recolha dos RSU aos 18. “É uma adrenalina andar a fazer isto. Eu cá gosto”. Com o 9º ano de escolaridade e a tropa feita, entrou como funcionário da Câmara e nunca teve outro emprego. Diz que prefere o turno da manhã porque fica livre às 13h00 e tem cinco filhos para ir buscar às escolas.
Em contrapartida, José Ferreira, 55 anos, é solteiro e não tem filhos. Teve várias profissões antes de vir para a Câmara. Uma delas foi na Secla, onde trabalhou cinco anos.
Uma pessoa habitua-se ao cheiro, dizem. No Verão, com o calor, é bem pior. O cheiro do lixo entranha-se na roupa. Não tanto o dos contentores quando os movimentam, mas sim o do camião que compacta toneladas de resíduos e que “transpira” um odor que vai directamente para os homens que viajam pendurados à cauda, num equilíbrio instável.
Por volta do meio-dia a equipa recolhe à antiga Mattel, mas falta ainda proceder às lavagens. O turno encerra à uma da tarde, a tempo de chegar a casa, tomar um banho e almoçar. Amanhã, às 5h30 da manhã estes homens voltam a encontrar-se para recolher o lixo que a cidade produziu durante o resto do dia.
Como é gerida a recolha do lixo no concelho das Caldas
Há 2708 contentores do lixo no concelho das Caldas
Uma equipa de 32 homens assegura no concelho das Caldas a recolha do lixo dos contentores. São brigadas de dois cantoneiros mais um motorista por camião que percorrem a cidade e as freguesias com giros pré-definidos, um pouco à maneira dos giros usados pelos carteiros dos CTT.
Os Serviços Municipalizados (SMAS) têm organizados seis giros e uma linha suplementar ao domingo para assegurar que o lixo seja recolhido atempadamente. Há três linhas que são diárias, de segunda a sábado, e três que vão às freguesias duas ou três vezes por semana.
Os homens que recolhem o lixo trabalham em dois turnos: um das 6h00 às 13h00 e outro das 13h00 às 20h00. São todos funcionários dos SMAS, com vínculo à Administração Pública Local e com a escolaridade mínima obrigatória, o que significa que têm entre a 4ª classe (o mais antigo), o 9º ano ou o 12º ano.
Tecnicamente, o “pessoal do lixo” chamam-se assistentes operacionais e ganham, em média, 757 euros líquidos por mês, incluindo o subsídio de turno.
Os SMAS criaram recentemente um “piquete contentor” com dois funcionários que vão aos locais resolver pequenas reparações nos contentores sempre que são reportadas anomalias. Normalmente é o presidente da junta de freguesia que comunica que aqueles receptáculos estão avariados. Trata-se de uma forma flexível de resolver problemas que, de outro modo, implicava fazer deslocar um camião para os transportar para as oficinas.
A gestão dos contentores (há 2708 contentores espalhados por todo o concelho) é um autêntico desafio para quem quer assegurar um serviço eficiente. O mau uso por parte de muitos utentes e o vandalismo obrigam a inúmeras reparações ou substituições. E há também aqueles que desaparecem. Sim, há pessoas que roubam os contentores do lixo.
José Moura, responsável pelos SMAS das Caldas da Rainha diz que gostaria de aplicar a georeferenciação aos contentores, o que passa por inserir um chip em cada unidade, permitindo que, a cada momento, se saiba onde eles estão e se conheça os seus ciclos de lavagem e desinfestação. Um projecto ambicioso, mas com benefícios óbvios ao nível da gestão.
Os lixos recolhidos não são todos iguais. Por exemplo, os resíduos colocados nos contentores do lixo na Zona Industrial não são iguais aos dos da cidade. E os lixos produzidos na cidade não são iguais aos das aldeias. E mesmo na cidade há bairros com perfis diferentes na produção dos resíduos. Esta depende de coisas tão elementares como o nível de rendimento dos seus habitantes, a sua média etária e até o número médio de filhos.
FACTURA DA ÁGUA INCLUI TAXA DE TRATAMENTO DE RSU
Desde Outubro que os caldenses passaram a pagar uma taxa pela recolha e tratamento dos resíduos sólidos, uma vez que Caldas da Rainha era um dos raros concelhos do país onde esse serviço não era taxado aos munícipes.
Essa taxa vem integrada na factura da água. Pode não ser a forma mais justa de taxar a produção de resíduos, mas é a única possível porque parte do princípio que agregados familiares maiores gastam mais água e produzem mais lixo. O ideal, claro, seria poder pesar-se a produção diária de resíduos de cada família e pagar-se exactamente o correspondente a esse peso, mas tal revela-se, actualmente, impossível.
Esta taxa também não premeia nem penaliza quem faz ou não a separação de resíduos. É injusto: há pessoas que têm o cuidado de separar os plásticos, vidros e o papel para os colocar nos ecopontos, e há outras que deitam tudo no contentor. E todas acabam por pagar o mesmo.
A introdução desta taxa nas Caldas da Rainha é importante para as pessoas perceberem que tal se traduzirá em contrapartidas benéficas para todos: uma cidade mais limpa, pessoal da limpeza com equipamentos adequados e uma frota com mais e melhores viaturas.
José Moura diz que não faz sentido deixar deteriorar a limpeza da cidade só para poupar algum dinheiro aos SMAS, pelo que vale a pena investir em novos camiões de recolha de resíduos (a frota actual, sem contar com dois camiões adquiridos há poucas semanas, tem 16 anos).
As Caldas pagam 20,75 euros à Valorsul por cada tonelada que se lhe entrega para depositar no aterro sanitário. Os caldenses pagam por ano 456 mil euros pelos resíduos domésticos que produzem. Se reciclarem mais, o lixo dos contentores diminui e a factura dos SMAS (que somos nós todos) diminui.
Se se juntar à recolha do lixo os custos da limpeza urbana no concelho a factura eleva-se a 2,1 milhões de euros por ano. A maior parcela desta factura é massa salarial dos seus funcionários, seguida do combustível dos camiões (oito camiões a circularem, em pára-arranca e a movimentar carga quase todos os dias das 6h00 às 20h00), bem como o pagamento à Valorsul pelo tratamento dos resíduos.
Resíduos recolhidos: 23.694 toneladas
Resíduos indiferenciados (contentores do lixo): 21.502 toneladas
Recolha selectiva (ecopontos): 2.192 toneladas
Capitação de resíduos indiferenciados: 1,14 Kg/hab/dia
Capitação de resíduos indiferenciados mais recolha selectiva: 1,26 Kg