Abílio Martins é o mais novo de cinco irmãos de uma família que trabalhava as suas terras na Serra do Bouro. Entre os sete e os 11 anos frequentou a escola primária que ficava mesmo ao lado de sua casa, no lugar da Boavista. O caldense fez o exame da 4ª classe na cidade, quando estes ainda se realizavam nos Pavilhões do Parque. “Eu era um dos melhores alunos”, recordou. Mas como prosseguir estudos, naquela época, estava fora de questão, foi com a ajuda de uma professora da A-Da-Gorda (Óbidos), amiga da família, que Abílio Martins arranjou o seu primeiro emprego. Aos 11 anos começou a trabalhar na Pensão Mil-Homens no Bombarral onde era o responsável por vender bebidas ao balcão do seu restaurante. Ficava a dormir naquela vila, o que o leva a afirmar que a sua vida de emigração “começou bem cedo!”. Esta primeira experiência laboral durou três meses.
Aos 12 anos conseguiu novo emprego, nas Caldas, que ficava mais perto da sua casa. Passou a ser aprendiz de canalizador e de serralharia numa oficina situada na Rua Moinho de Vento. Ia e vinha de bicicleta da Serra do Bouro às Caldas, fizesse sol ou chuva, frio ou calor. “Era uma hora para cada lado”, recordou o caldense, que laborou na oficina até ter completado 14 anos.
Em 1966 Abílio foi viver para a casa dos pais de uma cunhada em Sintra, onde também trabalhou numa oficina de serralharia. Recorda que aprendeu com um bom patrão, que era também “um bom mestre a trabalhar o ferro e a recuperar antiguidades”.
Viver em Sintra permitiu-lhe abrir os seus horizontes e poder conhecer Lisboa, dado que o jovem aprendeu rapidamente quais eram os transportes que lhe permitiam passear sozinho e conhecer melhor a capital nos seus dias de folga.
“A maior parte dos trabalhos de recuperação de antiguidades era feita para estrangeiros”, disse Abílio Martins, recordando que a oficina tinha um cliente inglês que lhes pedia vários trabalhos que “depois víamos em revistas da especialidade que ele trazia de Inglaterra”.
A oficina onde o caldense trabalhou fez também alguns trabalhos que fizeram parte da remodelação da Quinta Patino, em Colares, onde se realizou uma festa, promovida por um multimilionário, que foi muito badalada e que contou com a presença de figuras do mundo do cinema e da arte. Segundo Abílio Martins, participaram no festejo, as actrizes Gina Lollobrigida e Audrey Hepburn.
Na abertura da ponte sobre o Tejo
No dia 6 de Agosto de 1966, com 14 anos, Abílio assistiu à inauguração da Ponte Salazar. “Para mim foi uma coisa espectacular. Nunca tinha visto uma ponte tão grande!”, disse, referindo-se à abertura da ponte hoje designada 25 de Abril e que permite a ligação entre Lisboa e Almada. “Passámos a ponte, fomos almoçar a Cacilhas e depois regressámos!”, contou Abílio sobre aquele dia que não vai esquecer, sentindo-se parte da História ao marcar presença na abertura ao trânsito da então maior obra pública do país.
Em Sintra manteve-se até 1968, altura em que regressou às Caldas e à mesma oficina – de canalização e de serralharia – onde tinha começado a trabalhar na Rua Moinho de Vento. Só que, no início de 1969, “tive um pequeno desentendimento com o patrão e por isso despedi-me”, contou. Mas logo de seguida foi convidado a trabalhar na FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), a antecessora do Inatel, na Foz do Arelho. Foi integrado na equipa de manutenção, tendo a seu cargo, entre outras tarefas, o arranjo de milhares de torneiras. “Ainda me lembro da encarregada da lavandaria ter ficado toda contente pois tinha muitos ferros de engomar estragados e eu arranjei-os todos”, recordou Abílio Martins, que dormia nas instalações da FNAT. Na época tinha 16 anos e já tinha comprado uma motorizada que pagou a prestações e que lhe permitia as viagens entre a Foz, Caldas e a Serra do Bouro.
Fuzileiro em Angola
Em 1969 Abílio Martins soube que estavam a pedir voluntários para a Marinha e alistou-se, tendo escolhido a especialidade de fuzileiro. Os treinos eram difíceis, mas “como eu nasci no campo, as pessoas são mais duras”, recorda, destacando que aguentou a dureza das provas. O caldense terminou o curso em 1970 e integrou a Companhia 4 de Fuzileiros com destino a Angola.
Viajou no navio S. Gabriel, um petroleiro de Marinha que também transportava tropas. Esteve em Luanda durante seis meses e depois foi transferido para Santo António do Zaire onde a missão era patrulhar o rio Zaire, que faz fronteira com o Congo. Tinha 20 anos. “Adaptei-me muito bem à maneira de se viver”, disse Abílio Martins, recordando que no posto onde foi colocado, nas proximidades do rio Zaire, vivia uma família de pescadores. O único meio de transporte que podia contar eram as suas canoas e “eu ia à pesca com eles regularmente”.
Após mais seis meses em Luanda regressou a Lisboa de avião. Foi a estreia do caldense nas viagens aéreas, em 1972.
O serviço militar na altura eram quatro anos e, como tal, o restante tempo foi passado em Vila Franca de Xira para onde foi transferido. Estava mais próximo de casa e como já era “praça antiga”, pouco mais fazia do que assegurar-se que os sentinelas cumpriam o seu dever de vigia.
Em Agosto de 1973 o caldense passou à disponibilidade. Nessa altura soube através de um amigo que estavam a aceitar pessoal para ir trabalhar para a Alemanha. Inscreveu-se no centro de emprego e, após uma entrevista em Lisboa, foi logo aceite. Foi então de avião para Colónia para trabalhar numa fábrica que fazia peças para veículos pesados.
À sua chegada estava à espera um representante da empresa que o levou, juntamente com outros portugueses, até Hagen. Depois seguiram de comboio até Werdohl, localidade onde ficava a fábrica designada Stahlwerk.
“Comecei logo a trabalhar com portugueses e também com gente de outras nacionalidades”, contou o caldense que tinha então 21 anos. Entretanto ficavam alojados em espaços que lhe lembraram as casernas da tropa, localizadas nas proximidades da fábrica. Eram, por norma, quartos para quatro trabalhadores. “No meu quarto por acaso tive sorte pois fiquei apenas eu e um tunisino”, recordou acrescentando que falavam em francês, língua que aprendeu durante a tropa.
Em início de Abril de 1974 Abílio Martins teve que ser operado ao apêndice. A recuperar da intervenção e de baixa decidiu vir a Portugal. Mal sabia que no tempo de recuperação iria assistir à revolução de Abril. “Ainda participei nas Caldas nas manifestações que aconteceram na altura”, contou, explicando que foi feita uma marcha na Praça da Fruta (em frente aos Paços do Concelho, onde hoje se encontra a União de Freguesia de N. Sra. Pópulo) e que se prolongou até ao quartel, então RI5. “Eu era o primeiro da frente que segurava a bandeira”, contou.
Abílio ainda regressou ao seu trabalho na Alemanha. No total, esteve nove meses na fábrica de Werdohl e não teve tempo para grandes passeios.
Casamento combinado por carta
No Verão de 1973, quando veio de férias à Serra do Bouro, Abílio conheceu aquela que viria a ser a sua mulher.
Maria Elisa Antunes, de 19 anos, já estava emigrada nos EUA desde os 11, com a sua família e também tinha vindo passar férias à sua terra natal. Abílio tinha então 21 anos e encantou-se com a jovem. Não se haviam cruzado antes dado que ele era da Boavista e ela da Espinheira. Havia então na Serra do Bouro um grupo de jovens que aos domingos à tarde organizava matinées dançantes nas garagens das suas casas, onde se dançava ao som de música brasileira. Abílio recorda que estavam então na moda as canções de Roberto Carlos e Milton Nascimento.
Depois de terem convivido naquelas matinées, Abílio e Elisa começaram a corresponder-se, trocando cartas frequentemente. Elisa ainda hoje guarda estas missivas com as juras de amor que enviaram enquanto namorados.
“Começámos a ver que era assunto sério”, conta Abílio Martins, acrescentando que, no início do Verão de 1974, quando ele ainda estava na Alemanha, resolveram casar. Ela veio sozinha dos EUA, em Junho de 1974 e ficou em casa da sua avó para preparar o enlace, que teve lugar a 25 de Agosto na igreja de Nº Sra. da Conceição nas Caldas. O copo de água decorreu no antigo Hotel Lisbonense (hoje Sana Hotel). Naquela época, já não funcionava enquanto unidade hoteleira, mas ainda alugavam a sala para eventos. “Tivemos mais de 100 convidados”, recordou o caldense, que já pensava em viajar para os EUA, agora com a sua mulher.
Serra do Bouro em peso na América
O casal foi morar para Pearth Amboy (New Jersey) na casa de uma das irmãs de Abílio, tendo depois seguido para Jackson, onde viviam os seus sogros.
Abílio Martins começou então a trabalhar na firma de construção civil do sogro. Foi lá que participou na construção de vivendas, centros comerciais e edifícios para escritórios.
Passado alguns meses, Abílio estava bem adaptado à forma de vida norte-americana e já falava inglês, tendo para isso contado com a preciosa ajuda da sua mulher.
“A vida de um emigrante consiste em levantar bem cedo, sair para trabalhar e vir para casa descansar ao fim do dia”, conta. Na maioria das vezes, ao almoço, comia-se uma sandes no pequeno intervalo do trabalho. “E era muito duro…”, recordou, acrescentando que no Inverno se vive com muito frio e de Verão com muito calor.
Nas férias, o caldense e a família gostavam de passear e conhecer novas paragens. Visitaram S. Francisco, Los Angeles, Hollywood e o Havai. Foram também conhecer o México, a República Dominicana e o Canadá.
Reagan, os melhores anos
Em 1978, nasceu a primeira filha do casal: Melissa e dois anos depois, Abílio Martins adquiriu metade da firma do sogro.
Os pais do caldense também emigraram para os EUA e ficaram a viver também no estado de New Jersey.
Em 1982 a família muda-se para uma vivenda onde ainda hoje moram. As rédeas da empresa de construção civil vão lentamente passando para Abílio Martins que chega a gerir uma equipa de 20 trabalhadores. Em 1984 nasce Jéssica, a segunda menina do casal.
“O tempo mais agradável nos EUA foi durante a presidência de Ronald Reagan [1981-1989]”, contou Abílio Martins, referindo-se à época em que conseguiu obter dinheiro para acabar de construir a sua vivenda.
“Gastei sempre tendo em atenção o que ganhava”, contou o caldense que olha para trás e vê que sempre se adaptou às circunstâncias que a vida lhe trouxe. Excepção feita em 1993 quando veio com as filhas testar se estas se adaptavam à vida portuguesa, tendo vivido nas Caldas durante 13 meses. Melissa e Jéssica tinham então 14 e 9 anos e chegaram a andar na escola. “A minha mulher ficou na América, e ainda bem, pois nós acabámos por decidir regressar, no ano seguinte, aos Estados Unidos”, disse.
No final de 2016 Abílio vendeu a sua empresa de construção civil pois tinha chegado a hora “de descansar um pouco”. Viveu 44 anos nos EUA enquanto a sua mulher já soma 54. Normalmente vêm de férias a Portugal duas vezes por ano e “estamos por cá três a quatro semanas em Maio e Outubro”, contou, explicando que preferem viajar em época baixa pois há menos gente e as viagens têm preços mais acessíveis. Na Serra do Bouro ainda têm alguns primos, mas, na verdade, a maioria da família está no outro lado do Atlântico pois grande parte optou por emigrar.
“Nunca vivi muito os meios portugueses”, disse Abílio Martins, que, no entanto, ainda hoje é membro do Clube Português de Pearth Amboy.
Entre as Caldas e a Flórida
Elisa Martins vai reformar-se no final deste ano. Há mais de 20 anos que trabalha no sector bancário. Foi gerente e neste momento é consultora de empréstimos no PNC Bank. O casal está a preparar a reforma e vai dividir-se entre Portugal e a Flórida, “onde o tempo é melhor e onde a vida é mais económica para os reformados”, disse Abílio Martins, acrescentando que em 2020 vão vender a casa onde ainda vivem em New Jersey.
“Na verdade, ninguém regressa de vez. É lá que nos nascem os filhos e os netos e é por isso que andamos sempre cá e lá”. E cita Camões para explicar que também a alma dos emigrantes fica em pedaços, repartida, pelas terras onde passa.
A filha mais velha do casal, Melissa, é designer e formou-se na Universidade de Boston. A mais nova, Jessica, estudou música na Berkeley Music School, também em Boston. Hoje tem 35 anos, é multi-instrumentista, tem vários grupos musicais e já fez várias digressões. A mais velha, Melissa, ficou em Boston, cidade onde conheceu o marido e por lá ficou a morar. O menino dos olhos do casal Martins chama-se Finn Peter Galvin, é filho de Melissa e tem nove anos.
Logo que emigrou, Abílio Martins fez-se assinante da Gazeta das Caldas e até há pouco tempo continuava a receber este semanário na América. Mas como não gostava dos atrasos dos Correios, hoje é fã da versão digital que lhe chega por e-mail, sempre certa, à sexta-feira.