De uma tipografia clandestina na Fanadia a militantes destacados, a história do PCP, que celebra o centenário, também se fez de episódios nas Caldas da Rainha e um pouco por toda a região
Na história centenária do PCP, as Caldas da Rainha não foram palco de muitos episódios. A cidade não acolheu grandes indústrias nem teve um movimento operário muito desenvolvido, pelo que não tinha um tecido sócio-económico propenso à propagação dos ideais comunistas. Porém, José Carlos Faria relata que na Fanadia chegou a existir uma tipografia clandestina do partido onde se imprimia o Avante e outros materiais do PCP. Uma história que falta ainda recuperar.
Relativamente próximo das Caldas, na Cela (concelho de Alcobaça), funcionou uma casa clandestina do partido, onde Álvaro Cunhal passou uma temporada. Ele próprio refere essa estadia na região no seu último livro Lutas e Vidas. A casa, hoje abandonada, ainda está de pé, mas não é fácil de descobrir: fica numa curva apertada, escondida por um muro coberto de vegetação. O PCP sabia escolher casas que, não só não davam nas vistas, como mal se percebiam.
Terá sido às Caldas que veio parar Dias Lourenço, autor de uma espetacular fuga da cadeia de Peniche em 1954. Os pescadores que auxiliaram o recluso que se tinha atirado ao mar para fugir da prisão, deixaram-no às portas da cidade. Uma das versões desta história diz que o comunista escondeu-se no cemitério da cidade e, depois, ao cair da noite foi a pé até ao Bombarral, onde bateu à porta do casal Humberto Macatrão e Palmira Matos, seus camaradas, que o acolheram.
Sérgio Macatrão, 65 anos, filho do casal, não corrobora esta versão e diz que Dias Lourenço terá vindo diretamente numa camioneta de peixe de Peniche para o Bombarral.
“Ele foi ter como meu avô, António Matos, que era carregador na estação da CP e ele levou-o logo para a casa dos meus pais”, diz Sérgio. “Nunca poderia ter ficado no cemitério das Caldas. Morreria de hipotermia. Quando entrou em casa tomou uns bagacitos e foi preciso muita água quente para o corpo recuperar. Ele esteve, pelo menos, duas horas a lutar com o mar em Peniche. Era de Vila Franca de Xira e nadava muito bem”, assegura.
A casa na vila do Bombarral onde Dias Lourenço permaneceu escondido ainda existe. É o número 27 da Rua de Olivença e foi ali que o histórico comunista aguardou que o partido o viesse buscar. “A Pide ainda bateu o concelho, porque desconfiava que ele estivesse por ali, mas não o apanharam”, diz Sérgio Macatrão, que privou várias vezes com Dias Lourenço depois do 25 de Abril. “Ele vinha ao Bombarral de vez em quando e ficava cá dois ou três dias. A amizade com os meus pais manteve-se sempre”, evoca.
Voltando às Caldas, a história de Henriqueta Ferreira Marques merece uma investigação que recupere a memória desta mulher que desempenhou um papel importante no apoio aos presos políticos. Empresária e rica (chegou a comprar o Bairro dos Capristanos), a dona da então conhecida Garagem Caldas não encaixa no perfil de uma mulher comunista, mas foi militante do PCP com uma intervenção muito ativa na defesa dos presos políticos, inclusive com o apoio de organizações internacionais. Fez abaixo-assinados e procurava apoiar logisticamente os presos, além de denunciar os abusos que eram cometidos.
Foi ela que ficou encarregada da educação do filho de Dias Lourenço, a criança com leucemia que morreria com 10 anos e quem a Pide, mesmo sabendo da doença fatal, só permitiu ao pai vê-lo na última visita durante cinco minutos.
A sua militância valer-lhe-ia um estranho acidente que a deixaria com sequelas para o resto da vida. José Carlos Faria conta que o despiste que sofreu quando regressava numa das suas inúmeras visitas ao Forte de Peniche não foi casual e teve a mão da polícia secreta. O carro que lhe bateu, fê-lo numa zona de declive para que capotasse e a investigação que foi aberta ao acidente acabou por ser abafada. Contra todas as expetativas, Henriqueta Ferreira Marques sobreviveu, mas ficou com problemas físicos e neurológicos para o resto da vida.
Nas Caldas da Rainha, o médico Custódio Maldonado Freitas foi um “empenhado e abnegado militante comunista”, no dizer de José Carlos Faria. Muita gente não sabe que, quando finalista do curso de Medicina, chegou a prestar assistência a Soeiro Pereira Gomes, à data com uma tuberculose da qual haveria de morrer. Durante a Reforma Agrária, este caldense chegou a trabalhar voluntariamente no Alentejo, na cooperativa Muralha de Aço.
Na região, José Carlos Faria destaca João Faria Borda, que em 1936 foi um dos organizadores da Revolta dos Marinheiros, durante a qual revolucionários da Armada tentaram sair da barra do Tejo com duas fragatas para se juntarem aos republicanos que combatiam na Guerra Civil de Espanha. O golpe falhou e o alcobacense acabaria por pertencer ao primeiro lote de prisioneiros que inaugurou o campo de concentração do Tarrafal.
“Sobreviveu e tive o privilégio de o conhecer já depois do 25 de Abril. Morreu em 1985”, conta José Carlos Faria, que destaca também o papel do caldense José António Ribeiro Lopes, preso em 1973 e torturado pela Pide.
Em Alguber (Cadaval), um filho da terra chegou a secretário-geral interino do PCP. Júlio Fogaça, que chegou a estar preso por duas vezes no Tarrafal, acabaria expulso do partido depois de ter sido preso pela Pide numa pensão na Nazaré com outro homem no quarto. Ainda hoje o PCP nega que tenha sido pela sua homossexualidade que foi expulso, mas sim pelo descuido em deixar-se apanhar pondo em perigo a estrutura do partido. A verdade é que, apesar das torturas, o cadavalense nunca falou na prisão.
Apesar da saída inglória do partido, num momento em que este ainda vivia na clandestinidade, Júlio Fogaça nunca renegou o seu passado. José Carlos Faria recorda-se de o ver nas Caldas, no verão de 1975, para dar o seu apoio ao partido num momento em que as sedes do PCP andavam a ser assaltadas. Júlio Fogaça, morreria cinco anos depois, com 73 anos.
Outro destacado militante comunista caldense foi José Augusto Pimentel, estofador, que foi preso pela Pide quando ao ser apanhado a distribuir o Avante!. Sofreu a tortura da estátua (que consistia em manter a pessoa acordada, de pé, durante vários dias seguidos) em Caxias, mas nunca falou. Curiosamente, a sua bicicleta (uma velha “pasteleira” como então se usavam), na qual distribuíra propaganda clandestina esteve exposta na Festa do Avante na exposição do centenário do partido. Atualmente pode ser vista no Museu do Ciclismo das Caldas, de cujo acervo faz parte. ■