Crónica de uma morte anunciada

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Isabel Xavier

A D. Dora, sentada num dos lugares da frente da “carrinha do colégio”, (na verdade um autocarro fretado para transportar os alunos), debruçou-se para melhor observar um grupo de estudantes que atravessava a praça da fruta, em direção aos pavilhões do parque, onde funcionava o liceu. Voltou a sentar-se e disse com azedume: “parecem umas leiteirinhas!”. Referia-se às meninas cujas batas, por serem azuis, lhe pareciam mais adequadas ao exercício daquela profissão. Nós rimo-nos, talvez nervosamente, porque, pelo menos no meu caso, seria uma bata daquelas que viria a usar no ano letivo seguinte (de “leiteirinha”, portanto), e estava bem consciente disso.
A questão das diferentes batas que as meninas das diferentes escolas da cidade tinham que usar constituía tema de muitas conversas e pretexto para insultos de vária ordem. As do colégio, por serem às riscas, faziam com que nos chamassem “zebras” – tinham a vantagem de podermos variar as cores das riscas –, as da escola técnica, brancas, conduziam diretamente ao epíteto de “baleias brancas” e a D. Dora acabava de inventar a expressão “leiteirinhas” para designar as alunas do liceu. Penso que não “pegou”, não houve tempo para isso: no ano letivo seguinte, 1973-1974, deu-se o 25 de Abril e um dos resultados da revolução foi deixarmos de usar bata.
Naquele ano (1972-1973), para além dos miúdos da primária e do Ciclo Preparatório, nós éramos os últimos alunos da única turma do antigo curso dos liceus em funcionamento no colégio, a turma do quinto ano (atual 9º ano), após uma gradual implementação dos restantes níveis de ensino no liceu. Durante o verão, tinha mesmo havido alguma preocupação por parte dos nossos pais, por temerem que o colégio optasse pelo funcionamento exclusivo da primária e do Ciclo. Em minha casa chegou a colocar-se a hipótese de terem que me matricular em algum colégio interno.
Assim se justifica o título desta crónica, evidente plágio do escritor Gabriel Garcia Marquez, que espero não me vir a trazer algum dissabor em termos judiciais.
O liceu veio para as Caldas, no colégio havia apenas uma turma no ano de 1972-1973 e deixou de haver qualquer turma do antigo curso dos liceus em 1973-1974. Não há aqui algo de simbólico?
Quando se deu o 25 de Abril, exatamente nesse ano, já nenhum dos antigos alunos podia sequer frequentar o colégio. A pouco e pouco, todos fomos saindo, por concluirmos os estudos liceais ou por transitarmos para o liceu, onde participámos nas RGA’s e nas RGE’s próprias do período revolucionário. Alguém imagina RGA’s e RGE’s no colégio? Tudo estava certo porque tudo aconteceu no tempo próprio.
Anos mais tarde, quando terminei a licenciatura em História (1981) e fui apresentar-me como professora no “liceu”, atual Escola Secundária de Raul Proença, receberam-me os membros do Conselho Diretivo. No respetivo gabinete estavam o Dr. Serafim de Físico-Química, o Padre Eduardo de Religião e Moral e a D. Rosa de Educação Física. Adivinhem de onde é que eu já conhecia estes “colegas”…

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