Deixou-nos a “memória mais viva e perene” da Gazeta das Caldas

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Na passada semana deixou-nos no culminar de um processo de doença prolongada, com a qual enfrentou sem desistir até ao último momento, mantendo uma atividade permanente e incessante, sem qualquer desistência, o Professor João Bonifácio Serra.

Até quase ao último e derradeiro internamento, planeou, discutiu, pensou, interveio, propôs, projetos, iniciativas, escreveu, visitou, numa corrida infrene que se veio a gorar agora com um fim físico, mas não em termos de resultados para todos os que com ele partilharam estes anos da sua vida.
É sabido e foi confessada inúmeras vezes a sua ligação, desde a idade infantil, ao nosso jornal, uma vez que seu pai, avô e outros familiares, como de forma especial ele próprio, estiveram sempre com este projeto e com a sua perenidade.
“Em casa dos meus pais e dos meus avós, na aldeia do Carvalhal Benfeito” disse-nos em entrevista, “os jornais eram muito disputados, até porque se vivia num mundo muito fechado. Recebíamos a Gazeta, o meu pai era correspondente de O Século e o meu avô era natural do Fundão e assinava o Jornal do Fundão. A minha avó não sabia escrever, mas sabia ler, portanto o dia de chegada dos jornais era celebrado com grande interesse. Habituei-me, por isso, a disputar os jornais, antes que o meu avô ou a minha avó os capturassem. Percebi que o meu pai começou a escrever na Gazeta em 1935, aos 18 anos, mas descobri textos do meu avô na Gazeta na década de 1920 sobre temas rurais. Nos anos 1940 encontrei, ainda, textos de um tio, que não conheci, pelo que a relação familiar com a Gazeta era extensa.”
E confessou também numa entrevista publicada em Dezembro de 2020 que “a partir dos 15 anos, fiz de tudo um pouco na Gazeta. Reportagens, rubricas, co-dirigi um suplemento literário, o Auditório, representava o jornal em acontecimentos de natureza cultural. E tinha um cartão da Gazeta, que me permitia ir ao cinema…”
O único texto conhecido publicado na Gazeta do considerado “escritor maldito”, hoje consagrado na literatura nacional, Luís Pacheco, publicado na Gazeta, foi em Agosto de 1966, e é sobre João Bonifácio Serra (tinha ele 17 anos), em que se refere à “precocidade dum talento literário” e “ao maravilhoso fenómeno que é a eclosão dum espírito pela pouca idade normalmente entregue a outras preocupações”. Nesse premonitório testemunho descreve as inúmeras atividades e iniciativas que já Bonifácio Serra tinha na sua cidade como a projeção que merecera nos jornais da capital, nomeadamente na República e no Diário de Lisboa, e que o levaria a tantos sucessos e resultados ao longo da sua vida.
Como João Serra se referia, fez de tudo na Gazeta durante estes anos da sua vida, tendo na sombra, dirigido o jornal duas vezes, uma ainda jovem com a auto-demissão obstinada de Saudade e Silva durante algum tempo, por discordância com a censura e, outra, quando eu próprio, em setembro de 1991, foi vítima de um grave acidente de automóvel e em que estive internado nos cuidados intensivos durante cerca de 2 meses no Hospital da Universidade de Coimbra.
Mais recentemente, em Maio de 2021, demos-lhe o grato prazer de ser convidado para dirigir a edição do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, o que ele fez com um prazer e um empenho inexcedíveis, experiência de que os eleitores beneficiaram.
Conheci-o à distância nessa idade juvenil, uma vez que o facto de frequentarmos escolas diferentes nas Caldas, nesse período da adolescência, nos impedia de nos aproximar, apesar de também conhecer bem a família que regularmente ia ao estabelecimento dos meus pais, comer as célebres sandes de carne assada e presunto, como a sua mãe, ainda viva e despedaçada pelo desaparecimento do filho, me confessava com saudade e emoção no passado sábado.
Depois e a partir de um processo que fui alvo por parte do ministro da Educação Sottomayor Cardia e do seu Secretário de Estado Almerindo Marques, em 1977, ele como dirigente sindical veio às Caldas assumir a sua participação nesse combate (que foi inglório para o Ministério) e permaneceu até agora, como um amigo indefetível e permanente ao longo de todas estas décadas.
Nunca recusei em participar em nenhuma das suas propostas ou de projetos feitos e alguns que nunca se concretizaram, como ele não se recusou a aceitar nenhum dos convites que eu ou a Gazeta lhe propuseram e que foram realizados, alguns com projeção nacional e que trouxeram às Caldas e às colunas da Gazeta, as mais altas instâncias do poder político e cultural português, entre as quais relembro com saudade as comemorações do centenário do nascimento do escritor caldense Raul Proença.
Muitas destas memórias da sua prodigiosa memória e inteligência estão patentes nas nossas colunas ao longo de tantos anos, onde deu a conhecer aspetos particulares da história local, como também apresentou e defendeu projetos estruturais para a cidade e região, muitos que ficaram pelo caminho, fruto da incapacidade dos dirigentes, da ausência de financiamentos suficientes e de visões de fundo que o soubessem acompanhar.
Sofria muito no silêncio com estas incomodidades e incapacidades, como com as invejas surgidas da mente de outros, que se sentiam ultrapassados ou menorizados com o brilhantismo das suas propostas, restando o seu último projeto, de um museu de cerâmica para as Caldas, neste limbo que certamente não terá continuadores por falta de arrojo, persistência e visão, não estando cá ele para lhe assegurar o rumo.
Um dos projetos locais em que mais investiu foi na criação em 1989 da Escola Superior de Artes e Design (ESAD.CR), no início ESTGAD, inscrita obrigatoriamente no Instituto Politécnico de Leiria, facto que lhe causou inúmeras dores de cabeça no período de arranque. Ali foi investigador e professor em cursos de licenciatura e mestrado, no que o acompanhámos sempre com a maior admiração e empenho. O seu trabalho e capacidade de iniciativa viriam a ser fundamentais no processo de atribuição, especialmente àquela Escola, em 2018, a Cátedra UNESCO em Gestão das Artes e da Cultura, Cidades e Criatividade.
Ao longo dos anos testemunhámos muitas das suas alegrias e tristezas, muitos dos seus regozijos e amarguras, considerando não ter tido uma vida fácil e um percurso sem escolhos, uma vez que as decisões que tomou, enfrentaram muitas vezes poderosos lobbies, que mesmo assim não o demoliram.
Um dos aspetos nele que sempre me impressionou, no contato que mantivemos durante tantos anos, foi a sua capacidade inesgotável de trabalho, de negociação, de produção de ideias e projetos novos, de alcançar objetivos à partida condenados.
Na última década quando foi atingido pela doença que o viria a vitimar, enfrentou-a com denodo sozinho, evitando partilhar esse sofrimento, mantendo a sua agenda de trabalho e de colaboração, sem mácula até ao derradeiro momento, em que partilhou esses momentos finais apenas com os muito familiarmente próximos, deixando os últimos passos definidos e programados, como se fosse mais um projeto a concretizar.
Que dizer mais? Como amigo próximo durante tantos anos e como responsável pelo projeto Gazeta das Caldas ao longo de quase meio século, apenas posso dizer que ter tido em João Bonifácio Serra sempre uma mão amiga, um conhecimento inesgotável e perene, uma palavra muitas vezes dura e perscrutante, mas que permitia aprender e decidir melhor, foi um privilégio infinito.
Falar de tudo isto obrigaria a ocupar toda uma edição da Gazeta das Caldas, melhor, várias edições da Gazeta, mas nas nossas colunas ao longo destes quase 98 anos de vida, encontramos a pegada ou a marca da família Bonifácio Serra, que deve ser a mais vincada e permanente da história deste jornal.
Que dizer mais? Na cerimónia de despedida nos arredores de Cascais, não conseguimos, por emoção, dar o nosso testemunho público, ficando neste arrazoado a tentativa de espelhar o quanto o admirávamos e como estava sempre pronto para dizer presente às suas e nossas ideias e projetos, fossem nas Caldas ou onde quer que fossem, sabendo que podíamos esperar dele a mesma dedicação e oferta.
Como nota do seu fino humor recordo, quando eu fazia uma permanência académica em Paris, há cerca de duas décadas, recebi-o de férias da Cidade Luz. Combinámos uma refeição no espaço comercial do Museu do Louvre, de que eu me gabava nunca ter visitado o museu propriamente, uma vez que guardava esse objetivo sempre para mais tarde, dado o seu gigantismo. Acabada a refeição, desvendou a surpresa inesperada: “tens aqui um bilhete para visitarmos o Museu durante a tarde”. E lá percorri quilómetros de corredores esmagado com uma das mostras culturais mais impressionante patente num só complexo. É evidente que este “sacrifício” seria retribuído com uma refeição noturna no mais antigo e conhecido café e hoje restaurante de França: o Procópio, onde se reuniam os conspiradores da Revolução Francesa do séc. XVIII…
João até sempre!!!! ■

 

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Emoção e reconhecimento na despedida

Na cerimónia de despedida dos seus familiares e amigos no Centro Funerário de Cascais, em Alcabideche, no próprio dia do seu aniversário, e antes da cremação, compareceram inúmeros pessoas, colegas e admiradores, tendo estado também presente o Presidente da República, Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, a antiga ministra da Saúde Marta Temido, os presidentes dos municípios de Caldas da Rainha e Leiria, o antigo líder do BE, Prof. Francisco Louçã, que foi seu aluno, entre muitas outras pessoas anónimas. Durante a manhã muitas outras personalidades por ali passaram. Com muita emotividade o filho, Pedro Arroz relembrou histórias da sua vida com o amado e adorado pai e outros amigos narraram momentos de partilha e de trabalho conjunto que deram uma imagem inesgotável da sua personalidade e valor.
Gazeta das Caldas, que também está de luto, apresenta à família os seus pêsames, pela partida física daquele que deixou uma marca indelével na história quase centenária deste jornal.

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