Do topo do mundo à Fanadia – nepaleses viajam 8000 quilómetros desde a Ásia para trabalhar nos pomares do Oeste

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Os dias são passados a trabalhar. Depois da colheita na Fanadia, alguns seguem para outras zonas do país
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Durante o Verão a Fanadia recebe mais de meia centena de nepaleses que ali trabalham nas colheitas da pêra e da maçã. Alguns por ali ficam a viver e a trabalhar, outros correm o país, de trabalho em trabalho. Gazeta das Caldas dá a conhecer nesta edição uma reservada, mas simpática comunidade que se instalou no concelho caldense e conquistou o respeito dos locais.

Ao fim da tarde, a partir das 18h00, o café da associação do Grupo Desportivo da Fanadia torna-se um ponto de encontro. É um corrupio de gentes, entre aqueles que aqui nasceram – muitos que nunca conheceram outro lar – e aqueles que fizeram milhares de quilómetros até aqui chegar.
É aqui que, no final de um dia de trabalho, dezenas de nepaleses que vieram para esta localidade caldense trabalhar se encontram para conviver e para fazer passar pela garganta seca – do sol e das poeiras do trabalho no campo – uma bebida fresca. A Coca-Cola é universal, há sempre quem peça, mas a cerveja também faz parte dos gostos destes imigrantes que vieram do topo do mundo (o Nepal é conhecido por nele se situar o Everest).
Ali ao lado, num campo de futebol que não tem qualquer actividade durante praticamente todo o ano, vêem-se jovens e menos jovens com feições asiáticas a correr atrás de uma bola. Energia não lhes falta, nem depois de oito horas a trabalhar no campo. Aquele campo de futebol pelado, com um piso irregular e ladeado por caniços, é por estes dias o local mais concorrido a partir das 18h00 e até à hora de jantar.
O desporto é uma forma de descomprimir e principalmente de não pensar nas saudades de casa. No total, são cerca de meia centena de pessoas, quase todos nepaleses e quase todos homens. A maioria veio sozinha em busca de melhores condições de vida.
Afáveis, cumprimentam quem está nos locais que frequentam e alguns já não dispensam uma conversa com quem ali trabalha, sempre com boa disposição.
Recebem-nos, curiosos, e falam-nos das suas experiências.
“Nepal means Never Ending Peace And Love” [Nepal quer dizer Paz e Amor Infinitos], diz-nos Chetanath Adhikari, jovem de 32 anos que veio de Chitwan há 20 meses. Esteve cá no último ano para a colheita da maçã e da pêra e depois andou por outros locais até voltar para esta campanha. “Aqui é tudo diferente de lá!”, faz notar. “Lá é tudo mais difícil, não temos aparelhos e as próprias técnicas não são tão avançadas, quando comparado com o Nepal. Este é um país desenvolvido, onde é tudo sistematizado. Enquanto o Nepal está de bicicleta, Portugal vai de comboio”.
A sua vontade de explorar o mundo foi o que acabou por trazer este antigo jornalista a este rectângulo ao lado do Oceano Atlântico. “Todos temos sonhos diferentes, não é só o dinheiro que nos faz vir, eu, por exemplo, quero conhecer coisas novas, quero ver a Europa”, conta.
Na Fanadia foi bem recebido. “É um sítio muito bom, com boas pessoas e que nos tratam muito bem, só tenho a agradecer”, realça.
É ele que nos mostra algumas imagens do topo do mundo, visto de baixo. “Nunca subi o Monte Evereste, mas estive várias vezes no acampamento na base [n.d.r.: a mais de cinco mil metros de altitude, muito superior aos quase dois mil da Serra da Estrela]”, conta-nos, elogiando a beleza natural do seu país.
Nas conversas que vamos mantendo com esta comunidade, é recorrente vir à baila o sismo de 2015 no Nepal e nos países à volta, um desastre que causou milhões de mortes e que levou muitas pessoas a procurar outros destinos em buscas de melhores condições para refazer a vida. Chetanath participou como voluntário em organizações que ajudaram os muitos milhões de afectados por aquele sinistro.

Um aumento nas vendas de 50%

No café da associação, Ricardo Ferreira nota um aumento da afluência nos meses das colheitas. “Nota-se uma diferença bastante grande com muito mais movimento. Sempre que eles vêm, são dois meses diferentes e para o nosso estabelecimento é bom porque as vendas aumentam acima de 50%”, conta Ricardo Ferreira, funcionário do café e marido de Carla Vicente, proprietária do espaço há já cinco anos.
“Esta malta vem ao fim do dia, a partir das 18h00 e até 20h00, que é a hora de jantar, depois recolhem, não são muito de sair à noite, só um ou outro é que de vez em quando vem aqui”, diz, acrescentando que “é malta porreira e como muitos são estudantes falam inglês, são cinco estrelas”.
Ricardo Ferreira nota que “agora que acaba a campanha vai haver aquela quebra”, num café aberto todos os dias desde as 7h30 até à meia-noite (excepto ao domingo em que fecha às 16h00).

Na Fanadia, depois do trabalho, o campo de futebol é o ponto de encontro

 

O que uns não querem, outros ambicionam

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Mas para perceber a chegada de tantos nepaleses à Fanadia é preciso recuar a 2012 e viajar até à Masil Frutas, uma empresa que foi fundada em 2004 por três irmãos – Hélio, Vasco e Nuno Silva – que à época aproveitaram os antigos pomares do pai e os tornaram numa empresa de sucesso, criando instalações próprias.
Em 2012, no seu oitavo ano de existência, a Masil Frutas sentiu as primeiras dificuldades em encontrar trabalhadores para as colheitas. “Sentíamos que era difícil colmatar as nossas necessidades de mão de obra com trabalhadores portugueses”, conta Hélio Silva, um dos três sócios da empresa.
É que a maior parte dos portugue­ses encara a actividade da fruta como sazonal e como um complemento ao ordenado durante as férias ou a algum subsídio que se esteja a receber. “É muito difícil encontrar trabalhadores porque eu digo logo que é com contrato e as pessoas dizem que assim não querem”, nota o empresário. “Encaram esta actividade de uma forma leviana e não pode ser assim, nós temos que ter tudo certo, temos de ter seguros”.
Nessa altura surgiu a hipótese de recorrer a uma empresa de prestação de serviços agrícolas, que colocou então 40 trabalhadores nepaleses na Fanadia. “Desse primeiro grupo mantivemos alguns trabalhadores e a partir daí esses falavam com amigos e conhecidos e passámos a contratar directamente, tratando nós dos recursos humanos”, explica.
Em 15 anos a Masil Frutas tem vindo a crescer e em 2018 atingiu uma facturação a rondar os 1,5 milhões de euros. Emprega durante o ano 23 funcionários, um número que praticamente quadruplica na altura das campanhas.
A empresa dedica-se à produção e comercialização de maçãs e pêras e exporta 80% do que produz.
No último ano voltaram a sentir dificuldades em encontrar mão de obra e recorreram novamente a uma empresa de prestação de serviços agrícolas que trabalha a nível nacional. Este ano, por exemplo, foram precisos cerca de 70 trabalhadores.
E estes não têm problema nenhum em ter um contrato de trabalho. Muito pelo contrário. Para eles o objectivo é mesmo ter um, que viabilize a sua estada em Portugal de forma legal. “Eles recusam pagamentos por fora e outras situações irregulares porque querem ter tudo certinho”, conta Hélio Silva. É que, se estiverem sem trabalho na altura de renovação dos papéis do SEF, podem ter problemas.
Normalmente os nepaleses entram em Portugal com um visto de turista que lhes permite procurar trabalho. Começam logo por pedir um número fiscal e um atestado da Junta de Freguesia em como moram nesse local, assim como um registo criminal (alguns já o trazem do Nepal, mas tem de ser traduzido). Depois, e já com contrato de trabalho, é-lhes atribuído um número de segurança social.
Conhecedora já da burocracia necessária, é a própria empresa caldense que, muitas das vezes, ajuda no processo de legalização sem nada cobrar em troca.
Mas para os empregadores há um handicap com estes trabalhadores. É que são regularmente obrigados a deslocações ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E como o de Santarém (onde os estrangeiros nas Caldas se devem deslocar) está com uma fila de espera muito grande, acabam por ter que se deslocar, por exemplo, à Guarda ou a Viseu. Tal viagem obriga-os a perder imenso tempo e dinheiro porque têm de ir de véspera, ficar num hostel e tratar das coisas no dia seguinte.
O facto de serem muito dependentes dos patrões, até porque não têm carro ou carta, e de, neste caso, encontrarem do outro lado uma postura de amizade e de respeito, também ajuda a que estejam mais disponíveis para trabalhar.
Em Lisboa estima-se que vivam milhares de nepaleses, assim como, por exemplo, em Odemira, onde existem grandes estufas de frutos vermelhos. Nas Caldas, na zona do Bouro, também existem muitos imigrantes asiáticos.
Há estrangeiros que caem num ciclo de falta de emprego porque não estão legais e porque as empresas não os contratam para não terem de passar pelo processo de legalização. Nesses momentos ficam vulneráveis, sem dinheiro e sem trabalho, e é aí que a força da comunidade mais se sente na inter-ajuda. Essa é mesmo uma das características que Hélio Silva nota nos nepaleses. “É uma comunidade que trabalha muito em grupo e tem um sentido de entreajuda muito grande. Não são piores nem melhores, mas orientam-se bem sozinhos. Não têm problemas de vícios, como por exemplo grande parte da comunidade de Leste tinha com a bebida. E são muito calmos, e pacíficos, nunca vi uma confusão entre eles e não há problemas de barulhos nas casas onde vivem. Além disso, respeitam muito os idosos”.

Um Chef nepalês

 

A comida nepalesa, para matar as saudades

Mas se uns vão para o campo e outros vão para o armazém, também há quem fique em casa. É que, se durante o ano a tarefa de cozinhar para todos vai rodando entre todos, na altura das campanhas a própria empresa paga a um funcionário como se estivesse no campo, mas para ficar em casa a cozinhar para todos os outros.
O facto de contratar um homem “apenas” para cozinhar é uma forma de facilitar a vida aos trabalhadores, pensada por quem sabe o que é trabalhar no campo. É que depois de um dia a trabalhar na agricultura, o que menos apetece é cozinhar, o que poderia levar ao desvalorizar de uma boa alimentação. Desta forma, a equipa mantém-se bem alimentada e com energia e, portanto, também vai render mais no trabalho que realiza.
Sahkul Khatri não tem uma estrela Michellín, nem precisa. Com 32 anos, tem mais de 11 dedicados à cafetaria e restauração. “Eu voluntariei-me para cozinhar porque no Nepal trabalhava nesta área e já tinha experiência, portanto não foi nada difícil para mim ter de cozinhar para tanta gente”, conta, animado. Veio de Catmandu sozinho no último ano e tem estado no Montijo.
Os seus horários são diferentes dos dos colegas. Começa a trabalhar às 3h00 para preparar os almoços que os colegas levam para o trabalho. Tem de ter tudo pronto até às 7h00 e depois fica a limpar a cozinha até às 9h00. “Aí vou descansar um bocadinho, até às 15h00, que é quando começo a fazer o jantar”.
No dia em que nos recebe mostra-nos duas panelas, uma com arroz branco e outra com quti, um caldo picante com vários legumes (ervilha, grão, entre outros). E entretanto já há quem se sirva. “Para os jantares faço comidas mais ligeiras, geralmente sem carne, que comem ao almoço”, explica. “Na celebração do Dashain e Tihar, um festival religioso hindu e budista, fiz um carneiro com arroz e ficaram todos muitos felizes”, acrescenta.
O chicken curry e o arroz nepalês com lentilhas são dois dos pratos mais famoso deste nepalês que deixou na sua terra a sua esposa e a filha, agora com nove anos. “Quando estiver mais estável quero trazê-las!”, exclama. Por semana gastam cerca de 300 quilos de arroz. Vêm às Caldas ao centro comercial fazer as compras normais, mas sempre que podem deslocam-se a lojas nepalesas em Lisboa onde compram produtos típicos do seu país.

Saudade é universal

Shakti Sapkota tem 45 anos e é o mais antigo nepalês a trabalhar na Fanadia. Aqui ficou desde 2013, quando veio de Narayangarh. “Quando vim para Portugal o Nepal vivia um momento político difícil, com o processo de criação da Constituição, não era fácil encontrar um trabalho”, explica-nos. Já no Nepal havia trabalhado na agricultura, mas nota que aqui é tudo diferente.
Quando veio, com 39 anos, a mulher, Parbali Sapkota e os três filhos ficaram no Nepal. Entretanto, há quase três anos, já conseguiu trazer a esposa. “Tem sido muito melhor, nos primeiros tempos senti muito a falta dela”, admite. Agora o que deixa mais saudades ao casal são, obviamente, os filhos. “Falamos sempre com eles, todos os dias, mas nunca é suficiente”, conta emocionada a mãe. O objectivo é trazê-los para Portugal, mas até lá uma viagem num ano (quando dá) e a internet têm de servir para matar as saudades.
Shakti é o primeiro a elogiar a empresa onde trabalha. “Se não fosse boa, não tinha ficado cá tanto tempo!”, exclama.
Essa é uma ideia que Suman Rajbjandari, de 28 anos, corrobora. “Estou há três anos em Portugal e durante um ano e meio trabalhei em oito companhias diferentes até encontrar a actual”, explica.
“Sinto que os meus patrões são quase como meus pais”, afirma. “São educados e tratam-nos com respeito e isso faz a diferença”, acrescenta.
Mais um testemunho, uma história parecida. Um jovem, estudante, que vem trabalhar para a agricultura. Deepak Thapa, de 26 anos, veio de Catmandu, a capital do Nepal. “A vida no Nepal até era boa, porque estava em casa, mas fui para a Hungria estudar e depois vim para Portugal (eu deste país só conhecia o Cristiano Ronaldo…) porque aqui é mais fácil conseguir ter os papéis para entrar na Europa”, diz-nos em inglês, depois de um “não falo muito bem português”.
Está há dois anos em Portugal e vai rodando de patrões e locais, para ter trabalho durante mais tempo e essa é mesmo a sua maior queixa: a dificuldade em encontrar um trabalho para o ano inteiro. “É muito difícil encontrar trabalhos que não sejam sazonais e temos de andar de local em local e muitas vezes ficamos um ou dois meses sem trabalhar, só a gastar aquilo que tentamos amealhar”, nota.
Deepak quer trazer a sua família porque foi bem recebido aqui. “O trabalho é árduo e eu nunca tinha trabalhado na agricultura”, explica-nos, queixando-se que o salário deveria ser melhor do que os 4,50 euros que recebe.
Apesar de se sentir bem recebido, não esconde que nem sempre são bem vistos nas ruas. “Algumas pessoas não são muito amigáveis, mas outras são muito afectuosas”, conta.
Os tempos livres aqui na Fanadia são passados muitas vezes ligados à internet, a ver vídeos no youtube ou a percorrer os feeds das redes sociais, acompanhando as publicações de amigos e familiares, e mantendo, através das tecnologias, a sua casa o mais perto possível.
Entre as principais diferenças para o Nepal e para a sua cidade natal, nota que a Fanadia “é mais calma”.
Diferente é a história de Chumaya Thajali, que aos 40 anos decidiu arriscar e vir para Portugal, de onde relatos amigos lhe davam conta da existência de boas condições. “Nunca tinha trabalhado nesta área, mas estou a gostar de Portugal e gostava de trazer os meus três filhos e a minha mãe para cá porque é o que sinto mais falta, passo o tempo a falar com eles e estão sempre a perguntar-me quando é que eu regresso”.
Quem tem a mesma vontade de trazer a família é Hom Gharti, de 48 anos, que deixou os quatro filhos (dois pares de gémeos) em Myagdi. “O Nepal é um país bom, mas Portugal é melhor governado, com menos corrupção”, defende o nepalês que já trabalhou no Bahrein e na Arábia Saudita no sector do petróleo.

Crenças diferentes, respeito mútuo

O Nepal é um país pobre e densamente povoado. Estima-se que nas últimas duas décadas um quinto da população emigrou. Os cerca de 176 euros mensais de ordenado médio que lá auferem não são suficientes para fazer uma vida digna, num país onde, a seguir à agricultura (que emprega cerca de 80% da mão de obra, especialmente na cultura do arroz), o turismo é a grande fonte de rendimentos.
A maioria dos nepaleses que decide emigrar pertence a uma classe média, com educação, e isso nota-se nas conversas. Em Portugal a comunidade tem vindo a crescer e até a criar negócios seus, como restaurantes e pequenos supermercados.
Outra curiosidade do Nepal é que este país, que faz fronteira com China, Tibete e Índia, também constitui um exemplo de comunhão pacífica entre religiões. O Hinduismo é a mais representada, mas também existem budistas (ou não fosse no Nepal a cidade onde nasceu o Buda), cristãos, islâmicos, mas também fiéis do Jinismo, do Sikhismo e de Bon. Na Fanadia a maioria também é Hindu, mas existem diferentes crenças debaixo de um mesmo tecto a conviver pacificamente.
Muhammed Bilal é paquistanês, veio de Sargodha. É o único não nepalês a viver neste grupo. É muçulmano e, portanto, tem hábitos diferentes, mas respeita e é respeitado.
A dificuldade em encontrar trabalho e a insegurança no seu país levaram-no a procurar alternativa na Europa. “No meu país havia muitos conflitos civis e ouviam-se tiros à noite, não podíamos andar na rua e sinto-me com muita sorte por estar em Portugal, que, quando comparado com o Paquistão, é calmo e descansado, com boas condições de segurança, transportes públicos e saúde. A vida aqui é mais colorida do que no meu país, é mil vezes melhor!”.

Depois de oito horas de trabalho no campo, ainda há energia para uma saudável futebolada de descompressão
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