Nascido e criado na Serra do Bouro, Emídio Horta tentou ir a salto para França aos 15 anos, mas não atravessou a fronteira. Andou embarcado, fez a tropa na Marinha, mas a impaciência para ir para o estrangeiro era muita – pagou um passaporte falso e aterrou em Nova Iorque.
Quando tinha 12 anos, Emídio Horta vinha todos os dias da Serra do Bouro para as Caldas da Rainha a pedalar numa pasteleira. Com a 4ª classe feita numa escola primária improvisada junto aos palheiros do António Rainho, o miúdo conseguira o seu primeiro emprego na Casa Baptista, a loja de ferragens que ainda hoje existe na Praça da Fruta. Emídio era moço de recados num tempo em que não havia telemóveis nem SMS e nem todos tinham telefone. E ajudava na loja, sempre com muitos fregueses, sobretudo à segunda-feira quando toda a gente das aldeias vinha às compras às Caldas.
Mas o gosto pela aventura e o querer ganhar a vida longe da pasmaceira que era o Portugal rural dos anos sessenta, levou-o a tentar a sorte em França. “Com o consentimento dos pais”, sublinha Emídio Horta, hoje com 70 anos, recordando aquela manhã em que ele e mais três moços da Serra do Bouro se juntaram a mais nove homens junto ao restaurante Os Queridos e esperaram por uns carros arranjados pelo passador para os levar para Chaves. Eram seus companheiros de aventura o Maçadas (Joaquim), o Roça (António Marteliano) e o Jarro (Joaquim Jacinto), todos da mesma freguesia.
“Levaram-nos a um rio, mas tinha chovido muito e não conseguimos passar. Trouxeram-nos outra vez para Chaves e ficamos todos na pensão Vigo. Mas fomos denunciados e apareceu a Guarda Republicana. Tivemos que fugir todos e escondemo-nos nuns pinhais”.
O filho da dona da pensão avisou-os depois que poderiam voltar. Estiveram por ali uns dias a tentar cruzar a fronteira e houve uma vez que até a atravessaram mas os carabineiros espanhóis não os deixaram passar. Voltaram para Chaves, a pé, já a meio da noite “e foi aí que fomos emboscados”. Emídio conta que “eram a GNR, a PJ a Pide e o raio que os parta a todos”, mas conseguiu escapar e andou uns dias disfarçado por Chaves. “O passador gostava de mim e como era o mais novo e tinha assim bom aspecto, vestido como deve ser, jornal debaixo de braço e óculos escuros, não pensaram que eu era um fugitivo”.
Os três colegas da Serra do Bouro tinham sido apanhados e viria a saber mais tarde que não escaparam à violência policial própria da época: “enquanto estiveram presos até comeram bem… até diziam que nunca tinham comido bifes tão bons, mas apanharam umas boas cargas de porrada porque a Guarda queria saber quem era o passador”.
Seguindo as indicações do dito passador, Emídio Horta dirigiu-se a Curalha, uma aldeia a seis quilómetros de Chaves onde se reuniu com mais cinco sobreviventes da rusga policial. Aí apanharam uma camioneta para Boticas e depois o passador levou-os, em dois carros, para Braga.
A tentativa de entrar em Espanha pela Galiza havia fracassado e o grupo veio, a expensas do passador, para Lisboa onde ficou hospedado na pensão Estrela, na avenida Almirante Reis. Depois foram mudados para uma pensão no Largo do Campo das Cebolas, mas parecia cada vez mais claro que os passadores (afinal eram vários) não conseguiram cumprir o prometido. Emídio foi posto na estação do Rossio onde apanhou o comboio para as Caldas.
“Fui trabalhar para as construções do José Vasques na Foz do Arelho e dois meses depois para a Casa Caldeano, onde entrei no dia 1 de Abril de 1965. Mas o Vasco Baptista passado uns tempos veio buscar-me e lá fui outra vez para a loja dele”.
Em finais de 1966 Emídio Horta inscreve-se na Escola de Pesca. Se conseguisse andar embarcado, não teria que ir para o Ultramar e, por isso, foi com alegria que no ano seguinte, então com 19 anos, recebeu a carta para ir fazer o curso de pescador em Pedrouços. Nove meses depois embarcava no cais do Poço do Bispo, no bacalhoeiro Senhora da Vida, para ir para os mares da Terra Nova.
Andou meio ano na pesca do bacalhau e depois foi chamado para a tropa. Para a Marinha, uma vez que já tinha andado embarcado. No dia 21 de Julho de 1969, com 21 anos, assenta praça em Vila Franca de Xira e nos 20 meses seguintes é enviado para várias unidades, entre elas algum tempo no navio Sagres.
Finda a tropa, o compromisso que tinha com o Estado português era o de andar embarcado a fim de não ser enviado para a guerra colonial. Mas Emídio já mostrara que sabia desenvencilhar-se dos laços que a burocracia do Portugal cinzento de então lhe atavam. Pediu a um amigo da Foz do Arelho que registasse uma bateira em seu nome. Emídio nunca andou aos bivaldes na lagoa, mas, oficialmente, andava embarcado. Tudo legal, portanto.
Estamos em 1970 e por esta altura, Emídio Horta vive sozinho. Os seus pais tinham partido dois anos antes para os Estados Unidos, cedendo, também eles, ao apelo da emigração. De resto, se há freguesia das Caldas da Rainha onde praticamente toda a gente tentou emigrar foi a Serra do Bouro.
Por isso, é natural que Emídio queira partir também para os Estados Unidos. E mais uma vez há-de fazê-lo à margem da Lei e recorrendo aos serviços de um “passador” mais sofisticado. Naquele tempo, para sair de Portugal valia tudo. E contra leis injustas, nada como contorná-las. A perspectiva de uma vida melhor justificava os meios.
Mas já lá iremos. Por agora é preciso dizer que Emídio Horta tem uma razão acrescida para ir para o outro lado do Atlântico: o rapaz da Serra do Bouro estava apaixonado e a mulher dos seus sonhos vivia no Canadá.
Rosa Maria era das Caldas da Rainha e tinha ido, ainda criança, com os pais para Puy-de-Dôme, em França. Mas a família resolve partir para o Canadá e instala-se em Oshawa (Ontario).
O namoro é arranjado por correspondência. “As cartas eram o nosso e.mail”, recorda hoje Rosa Maria. Os dois escreveram-se durante dois anos até que em 1970 ela vem a Portugal e conhecem-se pessoalmente. Fica logo ali decidido que haveriam de casar na América, o que viria a acontecer dois anos depois.
Emídio ainda hoje recorda um nome (de uma pessoa já falecida) e uma morada completa, em Lisboa, onde lhe arranjaram um passaporte falso, uma licença da tropa falsa, mas um Green Card verdadeiro. A “carta verde” era o documento que o autorizava a entrar e a viver nos Estados Unidos sem problemas. Custou-lhe tudo 72 contos (360 euros, mas uma verdadeira fortuna para a época), emprestados pelos pais e que Emídio haveria de lhes pagar até ao último tostão.
VÁRIOS EMPREGOS
Durante os 46 anos em que viveu na América, Emídio Horta teve vários empregos, mas viveu sempre em Elisabeth, no estado de New Jersey. Assim que chegou foi para a “pá e pica”, como se chamava ao trabalho de construção e depois passou por uma loja onde carregava e descarregava caixas. Mas em 1972 foi admitido na Phelps Dodge, uma fábrica de arame onde esteve quatro anos, a trabalhar por turnos entre as 19h00 e as 7h00, seis dias por semana, até ao dia em que a empresa anuncia o despedimento de 800 empregados. Arranjou emprego no mesmo ramo na Hatfield Wire, que acabaria por fechar em 1981.
Seguiu-se um período de biscates na construção, até que ingressa na St. Johnsrury Trkg. Co onde trabalhou 11 anos na secção de armazém e logística. “A fábrica fechou em 1993 e andei uns tempos aos trambolhões até que me apareceu uma luz luminosa ao fundo do túnel – encontrei um bar à venda e comprei-o. Fiz obras e no dia 10 de Junho – Dia de Portugal – de 1996 abri o restaurante Portugal Express”.
Gerir o seu próprio restaurante foi a actividade que Emídio Horta teve durante mais tempo – 20 anos. Quase metade do seu tempo de vida nos States. Com capacidade para 102 lugares sentados, um cozinheiro minhoto e um menu de pratos portugueses, o Portugal Express, acabaria por se tornar uma referência em Elisabeth. A própria decoração, com motivos portugueses, dá particular importância à Serra do Bouro e às Caldas da Rainha. Lá estão um cachecol do Caldas, o Zé Povinho, fotos e quadros da freguesia de Emídio Horta.
Hoje são os filhos de Emídio e Rosa que estão à frente do negócio, que continua de vento em popa, e é visita obrigatória das excursões anuais de autarcas caldenses aos Estados Unidos.
A Serra do Bouro é hoje o pouso preferido do casal, se bem que visitem duas vezes por ano os filhos Fernando e Denise em Eslisabeth. “Aqui só faço o que me apetece: planto os girassóis, cuido da horta e brinco com o tractor… vou lavrar, fresar, cortar mato, tirar ervas. Nem chamo a isto trabalho. Faço o que gosto”.
Uma vida nos Estados Unidos e Emídio Horta confessa que nunca aprendeu bem o inglês. “Desenrasco-me, mas trabalhei quase sempre para patrões portugueses e sempre com portugueses à volta…”, justifica-se.
E o que pensa o emigrante português na América das políticas do Presidente Trump? “Acho que tem de haver regras, mas os estrangeiros é que são a mão-de-obra, eles fazem falta para trabalhar e não se pode proibir os emigrantes. Mas também há lá no meio muito criminoso. Por isso é que tem de haver regras”.
De resto, no que diz respeito à política, o homem da Serra do Bouro que teve sucesso na terra do Tio Sam diz apenas: “nem republicano nem democrata. Sou dos que me deixarem trabalhar em paz e que não me aumentem os impostos”.