A “enfermeira das vacinas” tem muitas histórias para contar

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Cristina Narciso
Reformada há dez anos, ainda hoje se mantém ligada à profissão, pois dá aulas de Educação para a Saúde na Universidade Sénior - Natacha Narciso

Cristina Narciso sempre quis ser enfermeira. Seguiu os passos da irmã mais velha e percebeu que o seu destino profissional seria o de cuidar da saúde dos outros. Só não sabia que iria fazê-lo nos mais variados contextos: em hospitais universitários, a bordo de petroleiros, nas casas dos doentes, nos postos de saúde e em todas as escolas do concelho caldense. Os últimos anos da sua carreira  profissional foram na vacinação do Centro de Saúde das Caldas da Rainha onde chegou a vacinar 100 crianças por dia.

Natural do Porto, Cristina Narciso formou-se na Escola de Enfermagem da Invicta em 1968 e foi trabalhar durante dois anos para o Hospital de Santo António.
Em 1970 a jovem enfermeira integrou uma equipa que foi convidada para abrir o serviço de Pediatria no Hospital Universitário de Luanda. Recorda que assinou um contrato de seis anos ao fim do qual foi trabalhar para a Companhia de Petróleos de Angola, a Petrangol (hoje Sonangol) para fazer Saúde Pública.
Acompanhada por um médico, fez várias campanhas, vacinando os milhares de funcionários da empresa, tendo que subir aos petroleiros para acudir doentes a bordo. Vacinou os trabalhadores da petrolífera contra várias doenças como a Malária, o Tétano ou a Doença do Sono. “Tínhamos que fazer um pouco de tudo! Até as operações se fossem necessárias…”, disse Cristina Narciso, explicando que a sede da firma ficava em Santo António do Zaire (hoje Soyo). Tinha então que estar sempre de prevenção e disponível 24 horas por dia, durante 30 dias. O rádio tinha lugar cativo na sua mesa da cabeceira e era numa pick up Range Rover que “ia para todo o lado”.
Vivia-se em 1976 e, passado este mês de trabalho, a enfermeira vinha a Portugal ver a filha bebé (autora deste texto). Tinha cinco meses quando veio viver com a família materna no Porto “pela falta de segurança” em Angola.
A descolonização obrigou a que Cristina Narciso regressasse pouco depois com o marido e restante família. “Vim para as Caldas da Rainha em 1976”, disse, recordando que ia a caminho do hospital das Caldas para arranjar emprego quando viu o pedido de enfermeiras na então Caixa de Previdência (que mais tarde se uniu aos Centros de Saúde), situada na Rua Diário de Notícias. “Já não cheguei a subir a ladeira…”, lembra a enfermeira que preferia o horário diurno dos cuidados primários aos turnos nocturnos do hospital porque tinha uma filha bebé.
Quando inciou o trabalho na Caixa de Previdência, só os enfermeiros homens é que faziam domicílios. “Fui a primeira enfermeira a prestar cuidados de saúde na casa das pessoas”, disse Cristina Narciso que não se imaginava “presa” a trabalhar num só sítio.

VOLTAR A FERVER SERINGAS

Hoje lembra que quando saiu de Portugal, nos hospitais do Porto, em 1970, “ainda se fervia seringas como método de esterilização” enquanto que no Hospital Universitário de Luanda “todo o material que usávamos já era descartável”. Quando veio para as Caldas em 1976 “voltei a ferver seringas…”.
Na época, sempre que era necessário, os enfermeiros da Caixa substituíam ou cobriam falhas de pessoal no Centro de Saúde / Saúde Pública que, na altura, funcionava no primeiro andar do hospital. Era ali que também estava a vacinação e Cristina Narciso ia com frequência fazer este serviço, quando as pessoas de todo o concelho ainda tinham que vir às Caldas para vacinar. Mais tarde, foi possível vacinar nos posto de saúde das freguesias.

LEVAR A SAÚDE ÀS ESCOLAS

Já a trabalhar no novo edifício do Centro de Saúde, Cristina Narciso foi para a Saúde Pública, integrando a equipa da Saúde Escolar. Acompanhou vários médicos às escolas, vacinando, fazendo rastreios e promovendo sessões com dentistas, bombeiros e elementos de forças policiais.
Recorda que trouxe às Caldas o sexólogo Júlio Machado Vaz, que veio participar em sessões para jovens, pais e professores. “Sempre tentei inovar ao longo da minha carreira”, disse a enfermeira, que acrescentou que a Saúde Escolar das Caldas “foi pioneira, a nível nacional, a fazer rastreios auditivos nas escolas do concelho”. Não falhou nenhum dos estabelecimentos escolares, assim como todos os infantários e jardins de infância caldenses.
A Saúde Escolar era dividida com a Vacinação, serviço que se dedicou igualmente até se reformar, em 2007.
O momento de levar a vacina não é fácil para as crianças e seus familiares. Cristina Narciso recorda que havia dias em que existiam longas filas de crianças para vacinar e cada uma tinha a sua forma de reagir. Algumas não choravam, outras gritavam ou fugiam e lá vinha a enfermeira de seringa em punho.
“Era uma grande responsabilidade…”, disse, acrescentando que chegou a vacinar mais de uma centena de crianças nos dias de maior afluência ao Centro de Saúde. Muitas vezes foi também à Maternidade vacinar os recém-nascidos. Embora de forma esporádica, teve alguns vacinados que desmaiaram após a picada. Alguns foram mesmo de ambulância para o hospital até recuperar os sentidos.

A “ENFERMEIRA DAS VACINAS”

Ainda hoje é conhecida como “a enfermeira das vacinas”. Cristina Narciso diz que toda a vida manteve “uma postura confiante” para descansar pais e crianças. Avisava os familiares com antecedência de que forma iria reagir a criança e quais os possíveis efeitos secundários, como uma pequena inflamação ou uma ponta de febre nesse dia. “Coisas muito passageiras que em nada diminuem a importância da vacina. Mais valia estes efeitos secundários do que sofrer uma vida inteira de consequências graves das doenças”, disse.
Actualmente encontra na rua jovens de 20 anos que lhe dizem: “foi a senhora que me vacinou na minha escola!” e é também na rua que se cruza com mães que não esquecem a enfermeira que as vacinou, nalguns casos também aos seus filhos. Hoje sente saudades de ir às escolas e do convívio entre os técnicos de saúde e os professores. Afirma que as sessões sobre cuidados de saúde que realizou durante a sua vida profissional activa dão hoje a bagagem que necessita para leccionar as aulas de Educação para a Saúde na Universidade Sénior.

Declaração de interesse: a entrevistada é a mãe da jornalista autora do artigo.