Tradução: Aos olhos da flor, o mundo é uma flor. Aos olhos do o espinho, o mundo é um espinho. (Canção Nepalesa)
Recordo a primeira vez que cheguei a Kathmandu e lembro-me do movimento caótico, das cores, dos ruídos, tudo misturado num turbilhão inesquecível de sensações. Em 2009 com o apoio da Clínica Dentária do Montepio, estivemos no Nepal para uma série de formações na área da saúde oral. O projecto da Fundação Budi Bangara é aliciante pois não se dedica apenas a intervir pontualmente num determinado lugar e numa determinada acção. O que fazemos na fundação é criar projectos com raízes. Aliás, essa foi sempre a vontade do professor Ron Knevel, da Universidade de La Trobe, em Bendigo (Austrália). Ron iniciou este projecto há sete anos sempre com a intenção principal de criar um conjunto de estruturas académicas no Nepal que fossem, por si só, o garante de que todo o trabalho implementado na Promoção da Saúde Oral tivesse bases para continuar sem a ajuda monetária do exterior.
Esta é a prova que, quando se acredita em algo, as coisas acontecem. Sete anos depois existe uma faculdade que ministra a licenciatura em higiene oral e é responsável por uma série de projectos e outras escolas de formação espalhadas por todo o Nepal.
Quando nos aproximávamos do Disable Rehabilitation Center (DRC) algo nos preocupava. À nossa volta a terra era castanha, seca, algum gado magro e uma estrada poeirenta e esburacada teimava em não terminar. A vista do Centro deixou-nos preocupados, várias casas, rodeavam o edifício principal, janelas abertas, um muro de pedra decorado por roupa colorida, que secava entre o pó e o sol. Veio-nos à memória os filmes baseados em livros de Charles Dickens, os meninos descalços e miseráveis, a pobreza imensa. Todas essas memórias desapareceram quando o portão se abriu. De repente, dezenas de sorrisos nos cercaram, Robi jogava a bola para o ar e corria mais depressa que a sua única perna; Miri, invisual distribuía abraços e orgulhosamente colocava-nos um lenço bege de seda, representado as boas-vindas e a amizade dum povo que sabe agradecer.
Os dias no orfanato passaram a correr. Falámos de saúde oral, descobrimos que estes meninos e meninas acordam às 5 da manhã para estudar, comem o pequeno almoço às 6 e meia e depois às 7 vão para a escola. Pelo meio, lavam as mãos, a cara e, claro, os dentes.
Sentado no muro de cimento, olhava para as casa de banho ou para algo que se denominava casa de banho e imaginava a quantidade de vezes que ouvi, em Portugal, os responsáveis das escolas dizerem que não podem executar a escovagem dos dentes porque não têm condições. Provavelmente, não sabem o que é não ter condições. Aqui, escovar os dentes é tão importante como ir ao médico, é tão importante que acontece todos os dias e o mais espantoso, para além do esforço dos vários tutores, é a naturalidade que as crianças o fazem. Ramé, o professor responsável pelo orfanato dizia-me que tem de haver tempo e disponibilidade para prevenir a doença, porque dinheiro e médicos para a tratar é que eles não têm. É algo tão lógico que só não vê quem não quer.
Binh tinha 10 anos, falava Inglês com orgulho e jogava Badminton como um profissional. Quando nos despedimos perguntou-me se voltaríamos. “Cllaro”, disse eu, “para a semana os alunos vão começar o programa com vocês! “Great” disse ele e afastou-se dizendo adeus e sorrindo. Binh é como todas as crianças do mundo – está feliz quando brinca.
O projecto que a Clínica Dentária do Montepio levou até Kathmandu tem muito a ver com o brincar e com o aprender. Jogámos Badmington e com isso falámos de saúde oral. Jogámos Badmington e com isso escovámos os dentes. Misturámos conceitos para criar relações, para criar laços e vontades de aprender que a saúde oral é importante em todos os momentos do dia, até para jogar Badmington. Já tenho saudades de Bihn e dos seus amigos.
Nos últimos dias viajámos até Pokhara, uma cidade mais a norte, na base dos Himalaias. É espantoso ver como em sete anos se conseguiram abrir duas escolas e vários centros de educação de saúde oral para agentes comunitários. Acho que é o exemplo de que quando existe uma boa gestão de recursos, tudo é possível. A escola é o orgulho para quem começou a formar higienistas orais há sete anos, num pequeno prédio sem condições, com muito frio ou muito calor. Achou-se que faria sentido formar higienistas orais, mais do que dentistas, pois o que o pais necessitava era de criar condições para aumentar os níveis de cultura de saúde oral. As escolas de medicina dentária já existiam e são suficientes. Para além dos Nepaleses, existem os médicos dentistas que vêm da Índia e os ilegais que existem às centenas por todo o país. Embora, neste caso, o governo Nepalês tem estado a fazer um esforço para regular as profissões da saúde.
Este pólo da faculdade é um sucesso. Quarenta alunos por ano e, como já disse, um conjunto de infra-estruturas que já nada têm a ver com as que existiam em 2004. Os alunos contaram-nos histórias de sucesso e insucesso. Lá como cá, para investir na prevenção, não chega o trabalho dos higienistas pois é preciso que as equipas acreditem, que as clínicas dentárias acreditem que o futuro da medicina dentária passa pelo controlo da saúde e não pelo constante investir na doença e nas restaurações que, inevitavelmente levam a tratamentos dispendiosos ou próteses dentárias. Mas os sinais estão lá e foi com agrado que reparámos que as clínicas mais avançadas e com maior sustentabilidade financeira apostam nestes jovens e já não conseguem viver sem higienistas orais.
O tempo voou pelo meio desta experiência profissional. Deixem-me só partilhar a sensação de olhar para os Himalayas pela primeira vez. São gigantes irreais, montanhas de 8 mil metros, ali à nossa frente, silenciosamente belos. Subimos 900 metros e quase parecia que tocávamos no Anapurna. No caminho encontrámos pessoas que nos iam perguntando de onde somos. A palavra Portugal tinha sempre um eco: Cristiano Ronaldo! Invariavelmente eu dizia José Mourinho, mas não, Ronaldo é o rei dos Himalaias. Mas o mais espantoso, foi o senhor que vendia fósseis, uma pedras pretas com uma Amonite lá dentro, que no seu Inglês rouco me dizia: Caldas da Rainha, sim, sim, near Lisbon…Se calhar, conhecia mesmo, e não era apenas uma técnica de marketing para vender mais um fóssil aos turistas, que diariamente, passam pela estrada poeirenta que os leva à base do Anapurna.
Um agradecimento gigante aos Laboratórios Vitória e à sua gama de produtosVitis e Perio-Aid (Dentaid); e à Clínica Dentária do Montepio das Caldas da Rainha. Sem eles, este projecto não teria sido possível.
Mário Rui Araújo,
Higienista Oral, Caldas da Rainha.