A Liberdade de Imprensa foi celebrada, a 10 de maio, nas Caldas e em Óbidos com conferências, debates, percursos pedonais e até petiscos que lembraram de igual modo o meio século da Revolução dos Cravos
“Eu vi e ouvi a liberdade a ser proclamada em Portugal”. As palavras são do jornalista Adelino Gomes e foram proferidas no Centro de Artes, na última conversa da iniciativa sobre a Liberdade de Imprensa, organizada pela Gazeta com a Escola de Hotelaria e Turismo do Oeste.
Na manhã de 25 de Abril de 1974, estava no Terreiro do Paço e acompanhou a par e passo a revolução. Na altura estava proibido de trabalhar na Rádio Renascença, devido à censura, e foi até ao local “ver o que se passava”. Estava no meio da multidão e a certa altura vê o fotógrafo Carlos Gil, que já conhecia, e pediu-lhe para convencer os soldados a deixá-lo passar, com êxito. Juntamente com o fotógrafo, tentou perceber de que facção era o golpe e, enquanto falavam, percebeu que o comandante era Salgueiro Maia, o mesmo que tinha sido seu colega 10 anos antes no liceu de Leiria. Pergunta-lhe de que “lado está” e o jovem capitão responde-lhe com outra pergunta: se Adelino Gomes não tinha tido um programa que tinha sido censurado e o obrigou a ir para o estrangeiro? À resposta afirmativa, Salgueiro Maia respondeu: “estamos a fazer isto para que ninguém mais tenha de sair de Portugal por causa daquilo que diz, escreve ou pensa”. “É uma definição de liberdade de imprensa”, recordou Adelino Gomes, que viria a acompanhar e relatar todos os acontecimentos desse dia, com um microfone que pediu emprestado aos colegas da Rádio Renascença. As suas reportagens, no local, perenizaram o acontecimento, com testemunhos dos capitães de Abril e também do povo, que podia, pela primeira vez em muitos anos, expressar-se livremente. “Naquelas horas foi proclamada a liberdade de impresa, os vários jornais começaram a recusar ir à censura”, disse Adelino Gomes, mostrando um exemplar do jornal “A República”, que na sua primeira página proclamava: este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura.
Voltando um pouco atrás no tempo, Avelino Rodrigues, o pároco dos Vidais que como capelão do RI5 chegou a acompanhar os primeiros passos do Movimento dos Capitães e, em 1968, se tornou jornalista, lembrou o contexto que se vivia na época.
“Os anos 60 eram, em muitos países, os “Gloriosos anos 60”, assistia-se à grande reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial, mas a ideia de que vai nascer um mundo moderno passava muito longe da vivência de nós portugueses”, contou. E isso devia-se em grande parte à censura.
O jornalista, que foi redator do jornal O Século e, em abril de 1974 era diretor de reportagem do Diário de Lisboa, afirmou que a maior parte dos jornalistas na altura eram contra o sistema. “O regime não tinha jornalistas capazes do seu lado, a classe não tinha consideração pelo governo e sempre houve muita resistência à censura”, afirmou.
Mas isso implicava dominar “a arte de escrever para a censura” e Avelino Rodrigues diz que o general Spínola foi uma das referências para o fazer. “Foi ele que me deu esta vivência de como sobreviver nesta arte”, contou. Quando foi à Guiné, Avelino Rodrigues teve um jantar com o militar e, no fim, este perguntou o que iria fazer com a conversa que tiveram. “Se os censores cortarem 30%, os 70% que sobram valem a pena? Você é que sabe até onde pode ir”, disse-lhe Spínola. “Mal sabia ele que era isso que fazíamos”, recordou Avelino Rodrigues. “A malta mais nova dizia que não vale a pena [ficar com os 70%], então estava a fazer autocensura, tinha que se disfarçar as coisas”, contou.
Para o Estado Novo, havia três temas que eram absolutamente tabu. O regime, a integridade do território das colónias e os católicos progressistas. “Tudo o que envolvesse o Papa João XXIII era risco de censura, o que até era impensável tendo em conta a ligação entre o Estado e a Igreja”, acrescentou.
Mas tudo o resto tinha que passar na censura e Avelino Rodrigues contou um episódio engraçado que se passou com ele mesmo n’O Século: “Até o boletim meteorológico foi cortado”, contou. “Veio um telex para a emissora a dizer que não se podia [fazer o boletim meteorológico] porque havia cheias no Libolo (Moçambique) e, como havia muitos destacados nessa região, ia alarmar as famílias…”
O cantor Manuel Freire também partilhou a sua experiência sobre a censura que era feita aos músicos, bem como as tentativas para a iludir. Fundador de um jornal e leitor ávido, equaciona se nos dias que correm há total liberdade de imprensa, denunciando o poder do dinheiro e as pressões que este pode exercer. A noite acabou com música de intervenção, até porque, como cantou “não há machado que corte a raiz ao pensamento”.
Petiscos em Óbidos e Liberdade na Bordalo
À tarde realizou-se uma rota literária em Óbidos. “O movimento dos capitães e o 25 de Abril” originou um percurso pedestre, guiado e com histórias que inspiraram a reunião de Óbidos, em dezembro de 1973. Inspirada nos encontros dos Capitães de Abril realizou-se a petiscaria literária, um momento gastronómico, vínico e com dinâmicas literárias, que decorreu no restaurante buffet Antonius, na Josefa d’Óbidos Hotel.
A Liberdade de Imprensa deu mote ao debate, que decorreu durante a manhã, na Secundária Bordalo Pinheiro. A temática juntou Fátima Ferreira (Gazeta), Dina Aleixo (Lusa), Francisco Gomes (Jornal das Caldas e Correio da Manhã), Alexandra Barata (Jornal de Notícias), José Luís de Almeida Silva (Gazeta), com moderação de Madalena Rodrigues da EHTO.
Para Francisco Gomes, a liberdade de imprensa “está ameaçada em todo o mundo, incluindo na Europa, e é uma resposta a quem quer transformar os meios de comunicação social nas suas próprias ferramentas de propaganda ou divulgar notícias falsas e desestabilizar as democracias”. Em março passado foi publicada nova legislação para proteger os jornalistas e a liberdade de imprensa na União Europeia (UE) que obriga os seus países a proteger a independência dos media da interferência económica e política, e que proíbe a intervenção nas decisões editoriais. O objetivo é “proteger o trabalho dos jornalistas” e “nenhum deve ter medo de qualquer tipo de pressão ao fazer o seu trabalho e informar os cidadãos”. Por seu lado, Alexandra Barata perguntou à plateia quantos jovens liam jornais ou interessados em seguir jornalismo. Menos de uma dezena levantou a mão. Fátima Ferreira lembrou um estudo recente da OesteCim sobre Igualdade que concluiu que 40% dos inquiridos considera que os rapazes têm acesso a melhores condições de vida e de trabalho; e perguntou como é que passados 50 anos de Abril “ainda há quem pense que as oportunidades não são iguais para todos”. Dina Aleixo referiu que é preciso saber distinguir a informação que circula pois nem todos os países defendem a Liberdade de Imprensa. Em primeiro lugar está a Noruega e, nos últimos, a Rússia e o México. Lembrou também que, em 2023, morreram 140 jornalistas e que estes pereceram “a tentar informar”. José Luís de Almeida Silva deu a conhecer ao que estavam sujeitos os jornais, antes da Revolução e que,por causa da censura, tinham que fazer cortes ou retirar artigos. Fê-lo, mostrando a Gazeta e relatórios da Pide que se estendiam às atividades culturais e ao que se passava nas aulas que o diretor da Gazeta lecionou na Bordalo Pinheiro. Adelino Gomes deu lição emotiva sobre a Revolução, que agradou a miúdos e a graúdos. ■