Uma catástrofe ambiental lenta e silenciosa ocorre nas províncias do Huíla e do Cunene no sul de Angola. A seca está a deixar populações sem recursos para sobreviver. Onde não há água não há agricultura e numa terra semi-deserta as comunidades mais afastadas dependem da ajuda externa para poderem comer. Para muitos, as raízes da vegetação rasteira, moídas e misturadas com água e sal, são a única dieta alimentar.

 

As duas meninas têm um ar perdido, embora conheçam muito bem o trilho que fazem diariamente para ir buscar água. O burro que transportava no seu lombo dois bidões com dez litros do precioso líquido fugiu-lhes e não têm agora como transportar água para casa.
Estamos em Tchiepepe, a algumas dezenas de quilómetros do município de Gambos, que por sua vez fica a 130 quilómetros de Lubango (antiga Sá da Bandeira). Neste fim do mundo só a igreja da missão do padre Pio Wakussanga é um edifício em alvenaria. Tudo o resto são palhotas ou cabanas de barro e colmo, algumas com chapas de zinco a fazer de telhado.
Em rigor não é uma localidade, mas sim um ponto no mapa. A população vive dispersa num raio de dezenas de quilómetros. Precisam de espaço para o gado pastar e os vizinhos estão longe uns dos outros. Mas hoje todos convergem para a missão porque vai ser distribuída ajuda alimentar. A maioria são mulheres e crianças. Os homens, há quem diga que foram caçar, mas há também quem explique que se foram embora, fugiram, emigraram para a cidade ou para a Namíbia. Ficam as mulheres, com 10, 11, 12 filhos. Paula, de 56 anos, tem 15 filhos. Vêem-se meninas com 12 ou 13 anos com um bebé às costas. Não é o irmão mais novo. É um filho.
Num raio de muitos quilómetros, um furo com uma bomba eléctrica alimentada por um gerador ali colocado por fazendeiros da região, é o único local de onde sai água. O motor só funciona umas horas por dia. Mulheres e crianças carregam durante quilómetros recipientes de plástico para ali se abastecerem.
Quando o gerador não está a funcionar, a única água possível é a de umas charcas insalubres, mais lama do que água, onde o gado converge para beber e onde os humanos, à falta de melhor, acabam também por se abastecer.
Entre os donativos hoje oferecidos por uma organização política, não estão só sacos de farinha. Há também cadeiras de plástico pois na igreja as crianças sentavam-se em troncos de madeira ou em pedras. Não fora o altar, modesto, e um cubículo a fazer de sacristia e este edifício nem pareceria uma igreja. Na verdade, é agora um armazém para onde as mulheres carregam as sacas de 50 quilos de ajuda alimentar.

CUNENE – AREIA E DESPOJOS DE GUERRA

A província do Cunene fica ainda mais a sul, junto à fronteira da Namíbia. A capital, Ondjiva, é uma cidade simpática, razoavelmente limpa e organizada para os padrões africanos (nada que se compare com a caótica Luanda). Dizem que foi reconstruída depois da guerra civil porque ficou destruída com os bombardeamentos. Angolanos desavindos (uns da UNITA, outros do MPLA), cubanos, sul-africanos e mercenários de diversos nacionalidades travaram ali algumas das mais dramáticas batalhas de um conflito que durou 40 anos.
Testemunhos bem visíveis da guerra são os tanques e os carros de combate que se avistam, enferrujados ao longo da estrada entre Lubango e Ondjiva. A caravana que vai prestar ajuda às comunidades afectadas pela seca afasta-se da estrada asfaltada e penetra numa picada arenosa onde em breve os veículos todo-o-terreno irão progredir a uma velocidade exasperante porque alguns se atascam e é preciso empurrá-los.
Também aqui grupos de mulheres e crianças rodeadas de recipientes de plástico vazios aguardam ao longo do caminho (é excessivo chamar-lhe estrada) que passe o camião municipal com um tanque de água para os abastecer. Quando mais entramos no interior, através da vegetação e da areia, maior é a sensação de isolamento. Os 35 quilómetros entre a estrada nacional e o local destinado a descarregar os bens são percorridos em quatro horas e meia. O camião com os sacos de farinha ficou horas atascado na areia traiçoeira e é noite escura quando somos recebidos por centenas de pessoas que nos dão as boas vindas com cânticos e danças. Venham de quem vier, de um partido político, de uma religião, do governo, ou de uma ONG (Organização Não Governamental), os donativos são sempre festejados e bem vindos.

UMA POVOAÇÃO QUE É UM PONTO NO MAPA

Em Setembro é Inverno em Angola, mas na picada que vai para Ongwe o calor molesta quase tanto como os inoportunos mosquitos. Também aqui o caminho é um pesadelo devido à areia que deixa os veículos atolados. A paisagem é desoladora e parece impossível que aqui habitem comunidades com milhares de habitantes, todas dispersas, longe umas das outras. Ongwe, a 85 quilómetros a leste de Ondjiva, é um ponto no mapa. A localidade é composta por um edifício do governo, um posto da polícia, uma enfermaria e uma escola primária. E também um poço com uma bomba manual, na qual as mulheres dão à manivela para extrair alguma água. Por cada balde de plástico cheio, é preciso esperar quase uma hora para que o lençol freático volte a subir e se possa encher o recipiente seguinte.
Para aqui convergem centenas de pessoas num raio de muitos quilómetros pois é o único ponto onde (ainda) há água. As mulheres vêm de madrugada para se abastecerem. Algumas dormem ali mesmo.
No caminho encontramos três crianças com arcos e flechas. Não estão a brincar. Mal sorriem. Mal falam português. A seca retirou as crianças da escola porque todos os braços são necessários para angariar recursos para a sobrevivência. Estas crianças andam mesmo à caça. De alguma galinha selvagem ou outro animal que lhes possa servir de alimento.

COMO SE PODE VIVER SEM ÁGUA?

O modo de vida destas comunidades não mudou muito desde tempos imemoráveis. Sempre praticaram uma economia de subsistência, viveram da pastorícia, da transumância, de alguma agricultura e da recolha de frutos e raízes. Nas verdade, não mudaram muito desde que tiveram contacto com os primeiros europeus há alguns séculos atrás. Apenas se vestem de forma diferente, com roupas velhas deitadas fora pelo primeiro mundo (apesar do calor há crianças com roupas quentes, kispos, blusões, camisolas de lã… porque não têm outras mais leves) e usam recipientes de plástico, mais leves para transportar a água.
Não sabem que estão a ser vítimas das alterações climáticas, que estão a sofrer as consequências de modos de vida diferentes que, sobretudo no hemisfério norte, consomem recursos desabridamente e estão a levar o planeta à exaustão. Esta gente olha para o céu azul, sem uma nuvem, e não percebe por que a estação das chuvas não deu lugar à estação seca.
Por toda a província do Cunene avistam-se rios e charcas secos. Tudo deserto e árido. Como se pode viver sem água?

 

Concertos solidários em Portugal e Angola

Vlado Coast é um artista natural da província do Cunene, que reparte a sua vida entre Luanda, Joanesburgo e Lisboa. Sensível ao sofrimento do seu povo no sul de Angola, tem vindo a alertar para a situação de seca no Cunene e promoveu no cinema São Jorge, em Lisboa, um concerto de solidariedade para angariar fundos destinados a ajudar as comunidades mais afectadas.
Em Angola o jovem, que canta no idioma kwanhama, tem previsto para os meses de Novembro e Dezembro um tour por praticamente todo o país com concertos em Luanda, Malanje, Kuanza Norte, Benguela, Huambo, Huíla, Namibe e Cunene.
Em Portugal, Vlado Coast disponibilizou uma conta bancária para recolher fundos para ajudar as vítimas da seca. Em declarações à Gazeta das Caldas disse que o dinheiro não será entregue às autoridades locais, nas quais não confia, mas que ele próprio se encarregará de comprar produtos na Namíbia para oferecer às populações locais que mais sofrem com esta catástrofe natural.
O NIB para o qual aceita doações é o seguinte: 003300004546011224805