Irene Lima tem 82 anos e é de Salir de Matos. Aos 32 anos decidiu emigrar e foi ter com as suas duas irmãs ao Canadá. Era para ficar cinco anos mas acabou por permanecer 17, trabalhando sempre na mesma fábrica, de componentes eléctricos.
Em 1985 regressou à terra natal com 49 anos, acompanhada pelo marido, Mário Lima, com quem casou por procuração em 1970. Hoje sente saudades “de tudo” e diz que ainda tem forças para voltar ao Canadá, para visitar parte da família que decidiu ficar por lá.
Nascida e criada em Salir de Matos, Irene Lina decidiu em 1968 emigrar em busca de uma vida melhor. Viveu na sua aldeia até aos 32 anos até tomar a decisão de rumar para terras canadianas.
Os seus pais eram agricultores e tinham uma mercearia (que era também uma tasca) onde Irene Lima e os seus nove irmãos ajudavam. Recorda que era na loja da sua família que os habitantes da região iam comprar “meio quilo de arroz ou de massa, cinco tostões de colorau, 50 gramas de café, ou meio quilo de sabão de cortar”.
Nos anos 60 toda a gente tentava emigrar, “na ânsia de encontrar uma vida melhor”, recordou Irene Lima, que já tinha duas irmãs que tinham partido para o Canadá na década de 50. A primeira partiu em 1951 e a segunda seguiu-a três ou quatro anos depois.
“A vida por cá era pobre, mesmo com a mercearia dos meus pais”, contou a caldense, explicando que as irmãs lhe enviaram a carta de chamada de modo a poder viajar. “Eu tinha a intenção de ficar no Canadá só cinco anos. Para arranjar dinheiro para fazer esta casa”, disse a emigrante que, afinal, acabou por permanecer 17 anos fora do país. Enquanto os seus pais foram vivos, Irene Lima vinha a Portugal, durante as suas férias, de dois em dois anos para os visitar.
De Salir para Toronto
Partiu em 1968 sem olhar para trás e com a 3ª classe feita. “Faço anos em Fevereiro e por isso entrei com sete anos e saí aos 10 anos da escola”, disse a caldense, acrescentando que tinha uma professora bastante exigente e que só em adulta percebeu que tinha de ser assim para assegurar que os seus alunos aprendiam. Reconhece também que com tal escolaridade “não iria encontrar emprego facilmente na região”.
Além do mais, havia o problema da distância. Nos anos 60 a posse de automóvel ainda não estava democratizada e não havia muitos nas freguesias. Por isso, a viagem entre Salir de Matos e as Caldas era feita de camioneta ou então a pé.
Irene parte, então, para Toronto e vai viver para perto das suas irmãs mais velhas.
“Trabalhei sempre no mesmo sítio, numa fábrica de componentes eléctricos para iluminação, motores e outras máquinas”, disse a emigrante, referindo-se à firma Noma Lights onde se produziam componentes eléctricos e de iluminação.
“O meu trabalho era bom, mas tinha que estar sempre em pé”, explicou Irene Lima, acrescentando que era preciso cortar cabos eléctricos, colocar terminais e fazer correspondências entre números e cores. “Tive que aprender rapidamente a dizer as cores em inglês”, disse a caldense que passados poucos meses já se encontrava a dirigir uma secção com 10 a 12 raparigas.
Eram, na sua larga maioria, portuguesas e italianas, o que acabou por contribuir para que Irene Lima não tivesse aprendido inglês durante os 18 anos de permanência no Canadá.
Na verdade, explicou, “eu não me pus a isso”, disse pois onde morava até havia uma escola pública onde se podia aprender inglês de graça. Só que os invernos canadianos são muito rigorosos, o que não convida a sair, nem sequer para a aprender a língua do país que a acolheu.
Casados por procuração
Um ano depois de ter ido para o Canadá, Irene Lima veio visitar os pais. É nesse ano de 1969 que vai reencontrar Mário Ascensão Lima. Ele era nove anos mais novo e Irene conhecia-o bem dado que “a irmã dele era casada com um irmão meu”. Durante vários anos deixou de o ver pois ele esteve mobilizado em Angola. Quando deu de caras com ele, expressou o seu agrado: “Ai o Mário está muito engraçado!”, comentou Irene Lima com as suas amigas. E ele também gostou de a ver e não teve mais nada. Nesse mesmo dia, ao serão, “pegou na motorizada e veio a minha casa confirmar se de facto eu lhe tinha achado mesmo graça!”.
Os enamorados marcaram presença no casamento de um amigo comum. Na festividade, Irene Lima dava a conhecer aos presentes que ali estava um rapaz que “se se portasse bem iria ter com ela ao Canadá muito em breve!”. Dava a conhecer a amigos e a familiares que namoravam. O namoro, no ano seguinte, deu lugar a um casamento “muito feliz” que vai durar 43 anos, vivido no Canadá e em Salir de Matos.
O nó foi dado por procuração, em 1970. Irene já tinha terminado as férias e regressado ao Canadá e por isso o casamento foi feito à distância. Ele assinou os papéis a 18 de Janeiro desse ano e dias depois chegava a certidão a um registo civil em Toronto. “Lembro-me que saí do trabalho e passei por lá para assinar os papéis e tive que levar uma amiga que assegurou que eu não tinha outro namorado!”, contou Irene Lima.
A caldense recordou que teve que ir ao Consulado Português tratar da documentação necessária “para ele poder vir ter comigo”, o que veio a acontecer ainda nesse ano. Por não falar inglês, Irene foi ao registo acompanhada por um sobrinho que, do alto dos seus cinco anos, ajudou na tradução do que foi preciso para fazer a carta de chamada para o seu marido de modo a poder viajar.
Em 1971 Mário Lima já trabalhava como soldador civil numa fábrica que se dedicava a fazer carrinhos do supermercado. No ano seguinte, Irene e Mário vêm a Portugal por causa do falecimento de um irmão de Irene, vítima de um acidente de motorizada. Foi uma morte que muito chocou a emigrante dado que o seu irmão Manuel Casimiro Ribeiro tinha apenas 48 anos.
“Quem não dava cem por cento não ficava”


“No Canadá tínhamos que trabalhar as oito horas por dia e quem não dava os 100 por cento, não ficava”, recorda Irene Lima, acrescentando que a família que possuía a Noma Lights era judia e “famosa pela exigência” que tinha para com os seus funcionários. “Se tínhamos algum azar e nos atrasávamos três ou quatro minutos, descontavam-nos logo um quarto de hora!”, disse a caldense, que, contudo, nunca teve problemas na fábrica. A sua forma de estar naquela empresa sempre foi exemplar. Inclusivamente chegou a levar uma das suas irmãs para lá trabalhar.
Para iniciar o trabalho às sete da manhã, Irene Lima tinha que sair de casa às seis. A Noma Lights ficava nos arredores de Toronto e no Inverno, devido à neve, era preciso sair ainda meia hora mais cedo para conseguir chegar sem atrasos.
No automóvel de Mário Lima seguiam a sua mulher, Irene, a sua cunhada Idalina e uma vizinha que também trabalhava na Noma Lights. Depois do serviço, a caldense vinha de autocarro e era sempre uma risada dado que entre os funcionários “havia sempre alguém que adormecia no caminho”.
A jornada de trabalho só terminava às 16h00, com duas paragens de dez minutos às 10h00 e às 15h00, o que dava apenas para comer uma peça de fruta ou beber um café da máquina. Para almoçar, os funcionários tinham apenas meia hora.
Além de boa funcionária e de já gerir o seu departamento, Irene era conhecida por ser a organizadora de festas.
A emigrante recordou que a fábrica na altura possuía centenas de trabalhadores e que ela era a funcionária 616. Todos sabiam que era ela que se disfarçava de Pai Natal ou então que se mascarava para fazer a recolha dos doces de Halloween para posteriormente os distribuir por todos os funcionários da firma.
Os fatos das épocas festivas eram feitos em sua casa, depois do serviço e muitas vezes costurados durante a meia hora que tinha para o almoço. “Dava para fazer tudo!”, disse, sobre a curta pausa que era dada para a refeição.
E o que fazia fora das horas de serviço? “Passeava com os meus sobrinhos ou dedicava-me aos lavores”, contou Irene, tia de cinco sobrinhos que aguardavam a chegada da fábrica pois todos queriam ir para casa da Ti Irene.
Fio de ouro pelos “bons velhos tempos”
Irene e Mário Lima resolvem regressar a Portugal em 1985. Em Salir de Matos “já tínhamos casa feita, pois mandou-a construir um sobrinho meu”, disse a caldense. Pouco antes de se despedir da empresa, colegas e patrões da Noma Lights organizaram a Irene um almoço festivo e todos se cotizaram para lhe oferecer um fio de ouro que ainda hoje usa ao peito. “Para me lembrar dos bons tempos”, diz, mostrando orgulhosa o colar, símbolo do reconhecimento profissional.
Irene Lima recorda, com carinho, as palavras do patrão da Noma Lights que lhe transmitiu que, apesar de ir fazer falta à empresa, compreendiam a sua decisão de regressar à sua terra. E desejaram-lhe felicidades, lembrando que ela ainda iria ter qualidade de vida durante muitos anos.
“O pai do patrão reformou-se aos 60 anos quando já não tinha forças para pegar na mala e trepar para a camioneta”, contou Irene Lima, explicando que não era isso que os patrões queriam para ela. No entanto, disseram-lhe também que, se por algum motivo se aborrecesse na sua terra natal, teria sempre as portas abertas para regressar. Irene ficou sensibilizada com tamanha homenagem e reconhecimento pelo seu desempenho e guarda com orgulho o jornal da firma onde foi publicado um texto de despedida. Nele pode ler-se que Irene Lima, funcionária que entrou para a fábrica em 1968, “sabe manter um sorriso no rosto tornando mais fáceis os dias caóticos”. Desejavam boa sorte à funcionária que chegou a liderar o departamento dos componentes eléctricos e que tinha à sua responsabilidade mais de uma dezena de funcionárias. E como a sua irmã Idalina se mantinha a trabalhar na Noma Lights, ficavam a aguardar a sua visita.
Regresso a Salir
A vinda para Portugal, em meados dos anos 80, prendeu-se com o facto de Mário Lima querer vir trabalhar para a sua terra natal. Irene teve pena pois só tinha 49 anos e por causa dessa decisão, tinha que deixar o seu posto de trabalho e a realização profissional que tanto a preenchia.
“O meu marido tinha a ideia de constituir uma sociedade com um amigo, algo que acabou por não acontecer”, contou Irene Lima. Por isso, Mário Lima passou a trabalhar por sua conta. Especialista em trabalhar em metais, Mário Lima tornou-se também mecânico de armas de fogo, reparando revólveres e caçadeiras e fazendo até decorações nas coronhas.
Em 2016 o marido de Irene Lima adoeceu gravemente, tendo falecido em Maio desse mesmo ano, vítima da doença de Crohn (uma infecção intestinal que afecta todos os órgãos).
Automatização “rouba” empregos
Questionada sobre a nova emigração, que se constata desde os anos da crise e que faz com que muitos jovens portugueses procurem novas oportunidades noutros países, Irene Lima responde com alguma hesitação. “Não sei se vão na melhor altura… Há muito trabalho que agora é automatizado…”. E explicou que quando entrou na Noma Lights, junto à máquina onde se cortavam os fios para os telefones era necessário ter quatro a cinco funcionários. “Quando eu regressei a Portugal, já só era preciso uma pessoa pois era a próprio máquina que colocava os terminais”.
Sobre os muitos migrantes que chegam à Europa, oriundos de países africanos ou do Médio Oriente, Irene Lima acha que “é muita gente a chegar para pouco espaço…”. Diz que não sabe o suficiente para dar uma resposta até porque se questiona se haverá emprego e habitação para todos. No entanto, não tem dúvidas que “deveria haver alguém que cuidasse e fizesse algo por eles, que fogem das suas terras onde também não têm condições….”. Depois recorda-se que ela foi emigrante e que foi bem acolhida em terras canadianas. Mas, na sua opinião, não se compara a grandeza do Canadá com o território português. Referindo-se a Toronto, onde morou, afirmou que é “uma cidade que não tem fim!”.
Quando regressou a Salir sentiu falta da sua vida de lá. “Tenho saudades de tudo! Do trabalho, das pessoas minhas amigas, era tudo diferente”. Recorda com saudades as idas à lojas do bairro onde vivia e onde quase toda a gente se conhecia. O dono do talho era, por exemplo, um senhor de Lisboa, sempre pronto a dois dedos de conversa. “Ainda me sinto com forças para lá voltar”, disse explicando que também sente a falta dos familiares que ficaram por lá.
Conhecida em Salir de Matos como Ti Irene, a emigrante já foi convidada para ir à Escola do 1º Ciclo de Salir de Matos para ensinar as crianças a fazer um cartucho de papel, tal e qual fazia há mais de 70 anos na mercearia dos seus pais. Fê-lo com muita alegria e sempre com um sorriso no rosto. Ensinou os mais novos a enrolar o papel de forma correcta, dando origem ao cartucho que era preciso para poder transportar 50 gramas de café ou os cinco tostões de colorau. A maioria dos petizes não conhecia e não sabia fazer tal formato.