Maria e Mário Silva tiveram, literalmente, uma vida de trabalho. Naturais de duas pequenas localidades vizinhas na freguesia dos Vidais, começaram cedo a trabalhar no campo, mas a procura por melhores condições de vida e de “dinheiro para fazer uma casa”, levou-os ao Canadá, onde permaneceram durante 30 anos. Com eles embarcou o filho, Carlos, que entretanto também já regressou e vive na casa da família, em Crastos.
Maria e Mário têm hoje, respectivamente, 90 e 84 anos, e olham para trás com o sentimento de dever cumprido. “Valeu a pena termos emigrado para o Canadá para melhorar a nossa vida”, conta Maria Silva, ao que o marido, acrescenta: “Não havia sítio melhor para viver”.
Maria e Mário Silva nasceram em Ribeira de Crastos e Crastos, respectivamente, duas localidades da freguesia dos Vidais que pegam uma com a outra, e conheciam-se desde crianças. Ela, nascida em 1928, era a mais nova de cinco irmãos: dois rapazes e três raparigas (já todos falecidos), e ele, nascido seis anos mais tarde (21 de Março de 1934), era o filho mais velho e tinha uma irmã.
A história do casal começa, como era natural na época, num bailarico da terra. Era noite de festa em Vila Nova e uma rapariga não tirava os olhos de Mário, que por essa altura já “arrastava a asa” a Maria. Esta, apercebendo-se do interesse da outra conterrânea, decidiu dificultar-lhe a vida e aceitou namorar com o Mário. Ela tinha 23 anos e ele 17 anos.
“Ele tinha muitas raparigas, era muito pretendido”, lembra Maria Silva, acrescentando que quando este começou a interessar-se por ela, não lhe deu grandes oportunidades porque era seis anos mais novo e também ela tinha outros pretendentes. Mas o coração falou mais alto e começaram a namorar. Algum tempo depois, Maria estava grávida. Na altura ambos viviam em casa dos pais e ajudavam-nos nos trabalhos do campo. Mas com esta nova condição da jovem, o pai de Maria decidiu que estes deviam começar uma vida em conjunto. Como conhecia os donos de uma casa de pasto na Rua Capitão Filipe de Sousa, nas Caldas, que estavam interessados em trespassar o negócio, falou com eles e o jovem casal ficou responsável pelo espaço, onde serviam refeições e alugavam quartos.
Mas o negócio não correu bem e voltaram para a casa dos pais, já com o filho, Carlos, que entretanto tinha nascido. A irmã, Alice (que tinha mais quatro anos que Maria), emigrara para a Bélgica e, depois, para o Canadá. “Nessa altura era um problema sair de Portugal, foi um doutor amigo do pai, Edviges, que morava nos Vidais, que a ajudou a ir para a Bélgica”, recordou Maria Silva. Alice partiria depois para a América com uma carta de chamada de uns portugueses conhecidos que lá viviam.
Já instalada no Canadá, Alice incentivou a irmã mais nova (com o marido e o filho), a juntar-se-lhe, o que viria a acontecer em 1967. Maria tinha 29 anos, Mário 23 e o filho, Carlos, sete anos, quando aterraram em Montreal, província do Quebec, a 11 de Abril.
As primeiras impressões desta nova vida foram boas. Maria Silva recorda que pouco tempo depois começou a trabalhar numa fábrica de fechos de correr para roupas. “Lá dizíamos éclaires”, recorda a portuguesa, que gostou muito de lá trabalhar e lembra o patrão, que ainda hoje recorda por “meu boss”, como sendo uma “pessoa muito correcta”.
Na memória guarda uma chamada da funcionária ao escritório para lhe dizer: “madame Silva és o número um aqui da fábrica”, expressão que foi proferida em francês, língua da qual adquiriu alguns conhecimentos. “O inglês já era mais difícil…”, reconhece, acrescentando que, entre as colegas, a esmagadora maioria eram portuguesas, existindo apenas uma inglesa.
Maria Silva trabalhou sempre na mesma fábrica durante 14 anos, até que esta fechou naquela zona, deslocalizando-se para outra província do Canadá. A emigrante não voltaria a trabalhar fora de casa, dedicando-se à costura e ao tricot como hobbies para passar o tempo.
Da altura em que trabalhou na fábrica guarda as amizades, nomeadamente de colegas com quem se continuou depois a corresponder. Conta também que a neve e o frio nunca foram problema que a impedisse de fazer as coisas. “Mesmo quando deixei de trabalhar ia sempre dar a minha volta, tinha um casaco próprio, bastante quente, que me protegia”, lembra à Gazeta das Caldas.
Votar pela permanência do Quebec no Canadá
Maria recorda que nunca pôde votar em Portugal e no Canadá só votou uma vez e porque teve uma razão muito forte para o fazer: o então primeiro-ministro, René Lévesque (fundador do Parti Québécois, que apoia a soberania nacional para a província de Quebec e a secessão do Canadá) queria separar a província do resto do país e ela não queria que isso acontecesse. “Foi a primeira vez que fui votar e ganhámos, o Canadá continuou unido”, recorda, satisfeita a nonagenária.
O Quebec é a mais extensa e uma das 10 províncias mais populosas do Canadá, com uma maioria francófona e tendo o francês como língua oficial.
Em Montreal, a família Silva começou por morar em casas arrendadas. A primeira, situada no Chemin du Roi, foi alugada pela irmã, Alice, e era um rés-do-chão, uma “casa humilde, com uma sala, cozinha e quarto”, recorda Maria Silva, que foi para o Canadá apenas com o dinheiro que a irmã lhe tinha enviado. “Trabalhei cá [em Portugal] tanto, tanto e não tinha dinheiro para a viagem”, recorda, sobre a vida dura e pobre que tinha ligada ao campo.
Já ambos a trabalhar, conseguiram passar para uma “casa melhor”, um segundo andar na Rua de Laval, hoje perto do centro histórico de Montreal. Depois, a primeira compra foi um duplex na Rua Lacordaire, junto ao Estádio Olímpico que tinha sido construído na época, e que foi depois vendida para irem para a cidade de Laval, nos arredores de Montreal, para ficarem mais perto do filho, que ali morava. Foi também nessa altura, em 1997, que compraram um apartamento nas Caldas, onde actualmente residem.
“Queriam que fosse chefe, mas ele não quis”
Aos 12 anos Mário já trabalhava no campo. Transportava a água para os homens que andavam a pulverizar e era ele também quem levava água e vinho, durante o dia, aos trabalhadores que andavam nas fazendas dos pais, que eram proprietários rurais. “De segunda-feira a sábado havia sempre um rancho de homens a trabalhar, e eu a ajudar. Ao domingo ia aos bailes”, recorda.
Tal como todos os rapazes daquela altura, aos 18 anos Mário foi para a tropa. Esteve em Santarém em Artilharia 6 e depois voltou para casa dos pais e à vida de agricultura, antes de partir para o Canadá, com 23 anos, já casado com Maria e com um filho.
“A diferença foi muito grande”, recorda o emigrante, lembrando que em Portugal, embora trabalhasse desde muito novo, não conseguia arranjar dinheiro para construir uma casa para viver com a esposa. “Os meus avós tinham terras, mas eu não tinha o capital”, lembra.
No Canadá tudo mudou. Mário começou por trabalhar nas limpezas em escolas e outros edifícios. Depois foi trabalhar para a companhia de caminhos de ferro canadiana (Canadian National Railway), a maior companhia de caminhos de ferro do país, que na altura era pública e que depois foi privatizada.
Ali trabalhavam na altura 36 mil pessoas. “Era uma companhia muito grande e não trabalhávamos todos no mesmo sítio”, lembra Mário Silva, que laborava nas oficinas da reparação e lavagem dos vagões de mercadorias.
O português entrou como jornaleiro, para fazer a limpeza, depois deram-lhe uma carta para ir trabalhar com um tractor, a despejar o lixo nos contentores e ir buscar as peças que eram necessárias para os comboios. Ali trabalhou durante 27 anos, em vários serviços, até à altura em que se reformou, em 1997. Dois anos antes, quando assinalou os 25 anos de trabalho na empresa, foi-lhe oferecido um relógio e um certificado da companhia, que ainda hoje guarda na sua casa das Caldas.
“Até queriam que fosse chefe, mas ele não quis”, conta Maria Silva, orgulhosa do percurso do marido.
Mas esta história é também a história de uma vida dedicada ao trabalho. Ser funcionário da Canadian National Railway dava-lhes a possibilidade de viajar de comboio gratuitamente por todo o Canadá, um país imenso, assim como reduções no preço de restaurantes e hotéis da companhia.
Mas o casal nunca aproveitou essas regalias. “Só queríamos trabalhar”, conta Maria Silva. E acrescenta Mário: “o meu boss dizia que se não fossem os portugueses, metade do serviço ficava por fazer”.
Em 1997 o casal veio passar seis meses a Portugal, para ver como se adaptavam à vida de novo nas Caldas. É que Mário estava bem instalado e, apesar de já estar reformado, na companhia garantiam-lhe trabalho se quisesse continuar. Mas o apego às origens falou mais alto e em Fevereiro de 1998 voltaram, definitivamente, para as Caldas.
Entretanto também tinham começado a restaurar a casa onde Mário nasceu, em Crastos. Agora o casal reside na cidade e aos domingos vai à aldeia natal almoçar com o filho, Carlos Silva, que também voltou há cinco anos, juntamente com a mulher, Virgie Viloria. Carlos Silva tem 55 anos e veio para Portugal aproveitar a reforma (uma vez que começou a trabalhar aos 15 anos). O filho do casal de emigrantes nos últimos tempos vinha todos os anos à sua terra natal e conta que desde os 40 anos sempre pensou em regressar em definitivo a Portugal. “É um espectáculo”, diz, destacando o clima da região.
A sua companheira, natural das Filipinas e que também residia no Canadá, junta-se aos elogios a terras lusas. “O clima, a comida, tudo é melhor. E aqui no campo a diferença ainda se sente mais, é muito tranquilo”, disse Virgie Viloria. que, juntamente com o marido, cultivam uma pequena horta biológica na propriedade, bem como as terras que são propriedade do pai.