MARISQUEIROS DAS BERLENGAS – Profissão de alto risco

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notícias das CaldasO encontro estava marcado numa pedra no meio do oceano. As coordenadas são os vários nomes dados aos diversos pesqueiros pelos homens do mar há gerações. No horizonte só se avista água, e os maciços rochosos das Berlengas, Estelas e Farilhões que constituem o pequeno arquipélago que emerge num dos pontos mais profundos da nossa costa, a cerca de 10km do Cabo Carvoeiro, junto a Peniche.

Onde está o Rui? Na imensidão do azul não se avistava ninguém. Os únicos sinais de vida vinham das aves que seguiam no rasto do Ginja e do zumbir do motor que respondia de imediato a todas as manobras de Dário Pimpão ao leme. O encontro estava marcado algures numa pedra.
Navegar entre as pequenas ilhas naquela massa de água e descobrir o outro lado dos penedos é uma experiência fascinante. Ao virar de uma pequena enseada lá estava o Rui Antunes, mais os 6 colegas que compõem a companha de marisqueiros do Onda Azul: Joaquim Pedro, Joaquim Martins, Jorge Nicolau, Jorge Henriques e Sérgio Vieira, são os tripulantes do semi-rigido construído pela Tornado de 6.30m de comprimento, impulsionado por um motor Honda de 150cv, manobrado com destreza por Emanuel Henriques, Skipper e proprietário da embarcação,   com mais de 15 anos de experiência de mar e um valor   investido na ordem dos 35 mil euros.

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A companha é heterogénea, os seus 7 elementos têm escalões etários entre os 34 anos e os 63 anos. A bordo do Onda Azul, homens marcados por anos de mar, com escoriações, arranhadelas e mãos calejadas nas rochas aguçadas, exercem profissões bem mais calmas quando em terra nos meses do defeso: Agricultores, carpinteiros, proprietários de cafés, um camionista, um músico e dois pescadores, trocam o conforto de profissões de pouco risco, estafadas pela economia e sem prespetivas de futuro, pela adrenalina do trabalho nas pedras e  pelo lucro. O risco tem um prémio e num dia normal cada marisqueiro pode ganhar em média acima de 400,00€ na apanha de percebes, pelos 22 kg. que a lei lhe permite colher por dia, (de terça a quinta), vendidos em terra a restaurantes e intermediários.
Os espanhóis acham que os percebes das Berlengas, não sendo os maiores, ou os mais bonitos, são os mais gostosos do mundo. Para o país vizinho seguem todos os anos centenas de quilos que valem bom dinheiro no outro lado da fronteira.
notícias das CaldasHoje há mais marisqueiros, menos poder de compra e menos marisco. Há 10 anos ganhava-se mais dinheiro. Só para as Berlengas estão passadas perto de 50 licenças para o exercício da atividade e atuam cerca de 15 embarcações que aproveitando os melhores momentos das marés de terça a quinta feira (únicos dias autorizados para a apanha do marisco), tentam ganhar o sustento para o mês. Durante o ano a lei só permite trabalhar de abril a julho e outubro a dezembro pelo que o que parece muito dinheiro à primeira vista, tem que ser completado com outras tarefas, para garantir uma fonte de rendimento regular.
No passado estava tudo vendido, agora muitas vezes temos que ir bater á porta dos clientes, afirma Rui Antunes, já na sua casa de Ferrel, concelho de Peniche, depois de um dia de trabalho, em que a família se junta para ajudar a escolher o marisco que mais tarde vai ser levado para ser vendido em restaurantes de Lisboa.
No mar a equipa é coesa. Todos por um, um por todos. O espírito de entre ajuda é constante e nas rochas as vagas não perdoam distracções. Enquanto uns se dedicam a arrancar o marisco às pedras, outros têm que estar atentos à força das vagas que tudo arrastam e facilmente podem causar lesões ou escoriações. O trabalho é ritmado, esgotado um pesqueiro o barco recolhe a tripulação e muda de local. O homem do leme assume aqui toda a sua importância. notícias das CaldasAbordar as rochas requer experiência. Um erro pode ser fatal. A bordo não há discussões, todos sabem qual é o seu lugar, a sua tarefa. O Onda Azul aborda outra pedra, os homens estão atentos. Num instante o semi-rígido sobe uns quantos metros, cavalga a onda e deposita os homens que saltam um a um sem hesitação. A vaga desce e o motor geme em marcha á ré, aguardando a próxima oportunidade. Tudo acontece com serenidade e confiança. A agilidade ganha ao longo de anos a escalar rochas e a aguentar o mar com o corpo, é bem visível num à vontade desconcertante.
Cheios os sacos e presos à cintura, muitas  vezes a única saída é saltar para a água. È indescritível a velocidade como tudo acontece. Em instantes a embarcação começa a recolha da tripulação. Em todas estas manobras homens e máquina trabalham em perfeita sintonia e é notória a agilidade dos 150cv do motor Honda que responde com prontidão em todas as manobras de Emanuel Henriques, sempre atento aos seus colegas, recolhendo sacos e instrumentos de trabalho num ritmo constante. Entrar no barco a partir da água não é tarefa fácil. O peso do corpo, a luta com a água e o barco que insiste em não estar quieto, obrigam a usar a força dos braços para trazer de volta os homens a bordo. Mal se recompõem, já vão a caminho doutro local. Aqui como em terra, também o tempo é dinheiro.
Hoje estamos com sorte. O mar está calmo grita ao longe um dos camaradas enquanto é fustigado pelas ondas e desaparece debaixo da massa de água. Este é o dia a dia destes heróis solitários que arriscam a vida, reconhecem que já tiveram medo, mas não trocam esta atividade por nada. O mar é o grande elo de ligação entre todos e ninguém esquece o dia em que resgataram da água um pescador desportivo que caiu das rochas e foi recolhido inconsciente e salvo pelo espírito de voluntarismo que caracteriza os homens do mar.

GINJA
O fiel amigo de todas as aventuras
notícias das CaldasTratado como membro da família e batizado pela ligação de Dário Pimpão à produção do famoso licor de Ginja de Óbidos, o Ginja quando não está a navegar, habita no ambiente aconchegado das soalheiras encostas do Sobral da Lagoa, em Óbidos, rodeado por bucólicos  ginjais e os aromas do generoso liquido que chegam da licoria do seu proprietário.
Semi-rígido construído pela Joker, com 5.15m de comprimento, homologado para uma lotação de 8 pessoas, é impulsionado por um motor Honda de 4 tempos que debita uns generosos 90cv, num suave mas musculado ronronar. Capaz de se passear com elegância entre baixios, ou atacar com garra os mares mais revoltos, cobre em boas condições de navegabilidade a distância entre as Berlengas e Peniche com 2 tripulantes abordo, em 8 minutos. Tratado com carinho, visita o ‘veterinário’ rotineiramente para estar em forma nos momentos cruciais.
Utilizado essencialmente na Primavera e no Verão, o Ginja é o fiel amigo de todas as aventuras marítimas da família Pimpão, transportando amigos e familiares para viagens panorâmicas ou servindo de ferramenta essencial a Marta Pimpão, filha única do licorista, bióloga de formação que mergulha com regularidade no arquipélago no desenvolvimento do seu trabalho cientifico.

DÁRIO PIMPÃO
O licorista que queria ser pescador
notícias das CaldasNatural do Sobral da Lagoa, Concelho de Óbidos, nascido em 1955, casado, com uma filha, Dário Pimpão nasceu no seio de uma família e numa aldeia fortemente ligada às lides da terra e num ambiente em que as ginjeiras e o seu fruto sempre fizeram parte do seu quotidiano.
Auto didacta na arte de confeccionar ginja, Dário Pimpão assume-se como licorista, com uma enorme paixão pela sua profissão sem poupar esforços na busca da perfeição pela actividade que elegeu como rumo profissional.
Inspirado na tradição antiga de confeccionar ginja de forma caseira para consumo próprio e gosto em brindar com os amigos, abarcou o desafio de desenvolver uma receita que permitisse confeccionar um produto totalmente natural, sem corantes ou conservantes que colocasse a Ginja Oppidum num lugar de primeira referência como Ginja de Óbidos.
Recusando-se a industrializar o modo de confeccionar a ginja, o licorista mantém-se fiel à sua fórmula de trabalho, a qual lhe tem merecido a conquista de vários elogios e a fidelização de uma clientela exigente que encontra na Oppidum a sua Ginja de Óbidos preferida.
Intrigado com as coisas dos sabores, dedicou-se à confecção de doces, compotas e confitagem de frutas, transformando a matéria prima de qualidade abundante na região, em pequenos deleites de degustação, conquistando a preferência de chefes pasteleiros pelos seus produtos.
Empreendedor, foi o pioneiro na invenção da ginja servida em copo de chocolate, tendo esta nova forma de degustar a ginja de Óbidos sido uma das inspirações para a realização do 1º Festival de Chocolate de Óbidos, em 2002. Mais tarde evoluiu naturalmente para a produção do Licor de Ginja com Chocolate, do qual é detentor da patente e recentemente á confeção  de bombons de ginja com chocolate.
Dário Pimpão, amigo dos seus amigos, homem de trato franco, conhecido pela sua integridade é um amante do mar praticando a pesca e a caça, gostando de receber na sua licoraria todos aqueles que desejem conhecer o seu trabalho e degustar a sua Ginja.
A atração pelo mar foi desde cedo a sua grande paixão. A proximidade de Peniche, os desportos náuticos e a pesca. Por falta de dinheiro para as garrafas fez mergulho em apneia, o interesse pelos agora modernos e vulgarizados desportos náuticos foi uma constante, mas naqueles tempos não havia nem tempo, nem dinheiro.
Peniche corporizou todas as suas paixões, acabando por se casar com a filha de um armador, com curtos períodos de trabalho na traineira do sogro. Determinado a ser um homem do mar obteve a cédula marítima, carta de motorista e mais tarde de patrão de costa.


AS BERLENGAS SÃO A GRANDE PAIXÃO

Com as voltas da vida trocadas pelos vai e vem das marés, o futuro pescador acabou por ser um bem sucedido produtor de Ginja. Nos poucos tempos livres, sozinho ou acompanhado, ao leme do Ginja ruma às Berlengas que visitou pela primeira vez com 14 anos e ainda se recorda  de ter dormido sobre os sacos de cimento das obras, do que é hoje o mais célebre restaurante da ilha.
O arquipélago é o seu refúgio. O contacto com o mar, as águas límpidas, a proximidade das aves e os encontros marcados com os indispensáveis amigos, que terminam com grandes caldeiradas de peixe apanhado na hora. Longe vão os tempos de trabalho na antiga fábrica da General Motors da Azambuja, com semanas de férias na ilha programadas com meses de antecedência e o dinheiro contado que só permitia comer do que pescava, invariavelmente búzios ao almoço e polvo ao jantar.
Aos 56 anos sente-se um homem realizado, com o privilégio de possuir uma casa ‘refugio’ no Cabo Carvoeiro, adivinhe-se: com vista para as Berlengas.
À filha transmitiu o gosto pelo mar e hoje acredita que a menina que se tornou bióloga, com obra publicada sobre a fauna subaquática do arquipélago, também ela gostaria de ser pescadora, no caso, dos segredos das profundezas do oceano.

A experiência do inexperiente
notícias das CaldasO mar é a grande paixão. A proximidade de Peniche, as visitas ao porto, ver descarregar o peixe preencheram grandes momentos da minha meninice. Foi em Peniche que aprendi a gostar do mar, a respeitar o trabalho dos pescadores e a sonhar com paragens longínquas.
Mais tarde, a aventura dos descobrimentos aprendida nos bancos de escola, empolgada pela retórica da época, criou o orgulho nos nossos navegadores, um bom aluno de história e o sonho em visitar os cabos de todas as tormentas e a conhecer os adamastores espalhados pelas costas de África.
Dentro ou fora do país, não há sítio com barcos e pescadores que não me prenda a atenção e das lentes da minha máquina fotográfica.
Ironicamente, o destino e as obrigações profissionais levaram-me a cavalgar ondas mas nas dunas do Sara, conduzindo expedições de ‘ávidos descobridores’, sentados ao volante de ‘embarcações’ de muitos cavalos, recheadas da mais moderna tecnologia. Duna acima, duna abaixo, durante duas décadas os mares dourados de areia, foram o destino de muitas aventuras e descobertas.

AS BERLENGAS
Do outro lado do Cabo Carvoeiro, imponentes, sempre presentes mesmo à distância de quem vive em Óbidos, todas as visitas passadas foram traumatizantes, com o Cabo Avelar a arrastar-se interminavelmente ao sabor da ondulação, a hora da chegada que nunca mais acontecia e a má disposição levada ao limite e a transformar o que devia de ser um dia de prazer, num enorme pesadelo, com a ansiedade constante de querer regressar a casa.
Dário Pimpão fez um convite que mais foi uma ordem: Vamos às Berlengas, com a promessa irresistível de que a bordo do Ginja ninguém enjoa. A curiosidade venceu os medos e a ousadia traduziu-se num dia inesquecível. Com a maré de feição e um mar de vagas longas, percorrer em menos de 15 minutos a distância que liga o porto de pesca aos farelhões, em total  liberdade, contacto com a natureza e domínio dos elementos com sensações poucas vezes experimentadas, num ritmo rápido, muito rápido a deslizar pelo oceano, um deserto de água sem atalhos com um forte aroma a maresia e salpicos da água fortes a penetrarem  na pele, numa harmonia perfeita com o meio, só quebrada pela necessidade de me “ancorar com firmeza”, para não cair borda fora.
As grandes surpresas teriam lugar mais tarde, quando se dissiparam as névoas e a luz intensa do céu se fundiu com os matizes azuis do mar, num cenário desconhecido e belo do lado poente do arquipélago, escondido dos olhares dos menos afoitos e privilegiados.
O contacto com os marisqueiros foi inesperado, motivo da reportagem que demonstra  a ousadia e a destreza em lidar com um mar temperamental e traiçoeiro, mas ao mesmo tempo generoso e fonte de rendimento.
Carlos Ribeiro tem 49 anos, vive na aldeia do Sobral da Lagoa, concelho de Óbidos, é fotógrafo e viajante, atividade que concilia com a  profissão de gestor e consultor de empresas.

Texto e fotografias de Carlos Ribeiro

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