Natália Correia Guedes dedicou vida aos museus

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Dirigiu entidades estatais,foi Subsecretária da Cultura e pioneira em várias áreas.Tem ligações às Caldas e lançou livro sobre Museu do Traje, que fundou

Natália Correia Guedes vem às Caldas passar os fins de semana na sua casa, que fica quase integrada no Parque D. Carlos I. Teve uma vida profissional vibrante, ligada aos museus e às exposições internacionais e tem preocupações com o património local.

Como surge a ligação da sua família às Caldas da Rainha?
O meu avô paterno, advogado, era natural do Sabugal e decidiu em final de oitocentos trocar Peniche pelas Caldas, onde poderia ter mais oportunidades profissionais, numa localidade onde poderia ser notário, advogado ou juiz e escolheu esta casa praticamente integrada no parque D. Carlos. Chamava-se Joaquim Manuel Correia era republicano e mal chegou às Caldas meteu-se logo na política, tendo chegado a presidente da Câmara que, na altura, se designava Administrador do Concelho. Ainda o conheci, apesar de ter apenas quatro ou cinco anos. Era também escritor, fez caricaturas, escreveu poemas e desenhava com primor.

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A sua família viveu por cá, incluindo o seu pai , tio e tias…
Sim, o meu avô teve quatro filhos, duas filhas que tinham mais 20 anos do que o meu pai, Joaquim Manuel da Silva Correia. Ele estudou cá, com uma professora particular que ensinava crianças aqui da Rua Rafael Bordalo Pinheiro. E aqui na casa, instalou-se ao lado o consultório do meu tio, o médico Fernando da Silva Correia.
O meu avô, que era um beirão, não deixou o meu pai ir para artes. Ele foi para Medicina mas nunca acabou o curso. Acabou por ir trabalhar para a fábrica de cimentos da Maceira, a convite de Henrique Sommer e eu nasci lá. O meu pai foi o responsável pela urbanização da zona da nova fábrica. Mantivemos ligação às Caldas, mesmo depois de termos ido viver para Lisboa, quando os meus dois irmãos completaram a quarta classe na Maceira.

Que memórias guarda das vivências nesta zona do centro histórico caldense?
Nesta rua viveram várias personalidades: a família Vera Jardim, cujo filho chegou a ministro da Justiça, a do escultor António Duarte que já novo tinha jeito de mãos, que faz pintura e escultura e que foi o meu avô quem afirmou que ele deveria prosseguir estudos. António Duarte foi meu colega na Academia de Belas Artes e contou-me como foi importante o apoio do meu avô. Este artista caldense foi um dos escultores mais conhecidos do século XX.
Também aqui viveu Augusto Pereira Brandão, presidente da Academia de Belas Artes, além do arqueólogo Alves Pereira que era conservador no Museu de Arqueologia de Lisboa. Também orientava a revista “Arqueólogo”, na qual o meu avô colaborou. Ainda Costa Mota Sobrinho também viveu aqui, na Rua Rafael Bordalo Pinheiro.
Entre as muitas lembranças, guardo as idas à livraria do Silva Santos, com as minhas tias, e que ficava mesmo ao topo da Praça.

Como se vivia nas Caldas? Eram tempos animados?
Era uma vida muito animada de facto. Todas as noites os meus familiares iam para o Casino, que era um clube de Recreio onde as senhoras conversavam e jogavam canastra e os senhores, bridge. Havia música ao vivo.
Numa ocasião, eu teria 16 ou 17 anos e os meus pais insistiram para que eu fosse ao Casino. Vivia-se o 15 de Agosto, uma das datas mais importantes na cidade pois havia tourada, concurso hípico na mata e todo esse grupo que frequentava esses eventos, ao fim da noite ia para o Casino. Lá tive de trocar o meu romance de Camilo (li tudo dele, assim como de Eça!), pois os meus pais queriam que eu fosse conhecer o grupo de S. Martinho do Porto. Foi nessa noite que conheci o meu marido. Estamos casados há quase 60 anos. Os meus irmãos davam-se com os filhos de mais de 20 famílias e jogavam ténis, iam para a Foz de bicicleta e ninguém ficava indiferente à alegria caldense.
O meu tio Fernando Correia não teve filhos e, nós, os sobrinhos éramos como se fôssemos seus. Eu acabei por o acompanhar nas suas incursões por todo o país e, no final, tinha que fazer uma redação sobre o que tinha visto. Lembro-me quando ele fez uma grande exposição sobre a Rainha D. Leonor e também me levou. Além do mais, tal como o meu avô, esteve sempre muito ligado à Gazeta das Caldas.

E também fez vários estudos académicos relacionados com as Caldas.
Sim, um dos primeiros trabalhos que fiz esteve relacionado com a Pré-história das Caldas. Depois estudei os Arquivos Paroquiais a propósito de vários artistas e mais tarde estudei a coleção de têxteis do museu do Hospital, constituída por paramentos que foram mandados fazer pela Rainha D. Leonor.
A minha tia ofereceu-me o arquivo do meu tio, Fernando Correia, e eu depositei-o na Associação do Património Histórico onde se tem feito um excelente trabalho, pois fizeram logo o inventário e têm dado continuidade ao seu estudo.

Como passou da história para a museologia?
Tive que fazer tese de licenciatura que era então obrigatória e estudei o Palácio de Queluz. No seu espólio encontrei o curriculum de um entalhador que concorreu à Casa Real, algo muito raro, e nessa altura fui ao Picadeiro Real e pedi à diretora de então, Maria José Mendonça, informando-a do que pretendia e ela convidou-me para ficar a trabalhar no Museu dos Coches, em finais dos anos 60, desafio que aceitei, assim que acabei a tese de licenciatura em História. E fiz o inventário dos trajes da Casa Real. Quando a diretora Maria José Melo passou para o Museu de Arte Antiga segui-a e, já no início dos anos 70, realizámos a exposição “Traje Civil em Portugal”.
Esta mostra de trajes acabou por dar origem ao Museu do Traje, tal como conto no livro, lançado no final do ano no próprio museu que ajudei a fundar e que dirigi durante os seus primeiros anos. Posteriormente fui diretora do Museu dos Coches e do Museu do Oriente.

Quando deixou a direção dos museus?
Saí quando fui convidada para dirigir o Instituto do Património Cultural, depois de ter dirigido a Direção Geral do Património Cultural (1979-1980) . Enquanto estive neste último cargo, sucederam-se sete governos.
A partir daí fui convidada a comissariar grandes exposições, muitas de caráter internacional, pois após terem sido apresentadas em Portugal, foram também vistas no estrangeiro. Uma delas, realizada em 1994, foi pedida pelo Vaticano e foi vista pelo Papa João Paulo II. Fui avisada que ele só estaria na exposição “Encontro de culturas : oito séculos de missionação portuguesa” dez minutos. Só que ele ficou mais de uma hora a conhecer as diferentes peças religiosas e escolheu falar em português. Foi uma honra! Entre outras, também me orgulho de uma outra mostra sobre S. Francisco Xavier, que foi feita na Cordoaria Nacional, em 1999, com peças inéditas e que a seguir foi pedida pelo Japão. Foi vista em seis cidades japonesas. Qualquer uma destas cidades tinham edifícios maiores do que o do Museu de Arte Antiga.

Teve momentos ligados às Caldas quando presidiu aos institutos estatais?
Sim, pois fui eu, nos anos 80, enquanto presidente do IPPC tratei da burocracia e assinei a compra do Palacete do Visconde de Sacavém para o Estado, que passou a acolher o Museu de Cerâmica.
Vim cá duas vezes como Subsecretária da Cultura e o presidente da Câmara de então, Fernando Costa, veio-me esperar ao início do território do próprio concelho das Caldas. Enquanto presidente da Academia de Belas Artes “recebemos o pedido para nos pronunciarmos sobre a obra “Jardim d’Água” de Ferreira da Silva, a pedido de João Serra”. O historiador, por proposta sua, passou a fazer parte da Academia. “Vim reunir com a presidente do Conselho de Administração do Hospital, Elsa Baião que me disse que a intervenção nesta obra não era prioritária”. Logo, “Caldas terá que encontrar outra solução para preservar a obra que necessita de ser intervencionada, como disse há alguns anos”, rematou. ■

 

Valorizar o centro histórico

A Rua Rafael Bordalo Pinheiro é uma das principais artérias do centro histórico que “é preciso valorizar”, defendeu

“O meu avô comprou esta casa em 1906 e até ao 25 de Abril esta foi sempre habitada”, contou Natália Correia Guedes sobre a habitação da família que fica na Rua Rafael Bordalo Pinheiro. Com a revolução, o seu pai ficou em pânico pois “teve ameaças de ocupação”, e por isso, Joaquim Correia decidiu alugar a quatro famílias e “cada uma fazia o que lhe apetecia e ninguém fazia obras”, partilhou.
A casa foi-se degradando e “quando eu a herdei decidimos transformá-la em turismo de habitação tendo recorrido a fundos europeus”. Desta forma “ durante mais de 15 anos recebemos turistas, grandemente estrangeiros”. refere, lembrando a permanência de várias personalidades interessantes como, por exemplo, o primeiro bailarino da Ópera de Paris ou o diretor da Biblioteca do Congresso de Washington “que gostou tanto da casa que deixou coisas de um ano para o outro”. Esteve também um oficial inglês, especialista em Invasões Francesas para visitar o que restava da Batalha da Roliça, em Torres Vedras. “Neste momento a casa é de toda a família”, disse Natália Correia Guedes, acrescentando que juntou 32 pessoas no Natal. “No ano passado éramos 45, descendentes de três irmãos”, disse adiantando que “a família foi algo muito importante para nós”.
Gostava ainda que a Câmara Municipal das Caldas “desse mais atenção ao centro histórico e ao próprio hospital”. E defende que até seria interessante “deixar o público ver nascer as águas quentes no próprio hospital”, acrescentou. Queixa-se também do ruído tardio de alguns eventos que se têm realizado no Parque no verão. Acha, por exemplo, que deveriam ser retiradas as “máquinas-bichos” que tinham função de contar aos turistas a história local e que estão “espalhadas pelo centro histórico, num perfeito abandono”. Sempre que vem às Caldas não dispensa uma ida à Praça pela frescura de frutas e legumes.
Natália Correia Guedes recomenda também a abertura ao público da Igreja do Espírito Santo que poderia ser integrada numa visita que incluiria a Igreja do Pópulo, a Mata da Rainha D. Leonor e o antigo Casino, se este último “tivesse atividades de qualidade”. ■

 

Percurso

  • 1943 Natália Correia Guedes nasce em Maceira de Liz (Leiria)
  • 1975 Dirigiu e fundou Museu do Traje. Posteriormente foi diretora do Museu dos Coches e posteriormente do Museu do Oriente
  • 1979 e 1984 -Diretora-Geral do Património Cultural e primeira presidente do Instituto Português do Património Cultural
  • 1990-1991 – Nomeada subsecretária de Estado da Cultura, dividindo tarefas com secretário de Estado, Pedro Santana Lopes
  • 1991 Fundadora e presidente da Associação Portuguesa de Falcoaria
  • 1995 – Concluiu doutoramento. Foi a primeira doutorada em Museologia do país
  • Anos 90 e de 2000 – Realização de exposições de caráter internacional, ligadas ao Patriarcado
  • de 2014 a 2023 Presidente da Academia Nacional de Belas-Artes
    desde 2002 Presidente da Junta da Casa de Bragança
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