O caldense que entrou no PCP pela mão de um informador da Pide

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Carlos Mendonça não chegou a concluir o curso de Engenharia, porque o trabalho no partido obrigava a uma verdadeira dedicação em exclusivo à causa

Carlos Mendonça percorria o distrito de motorizada, a expensas próprias, para coordenar os núcleos do Movimento da Juventude Trabalhadora. Só mais tarde o partido lhe passou a pagar as deslocações

Quando, com 17 anos, foi cursar Engenharia para o Instituto Industrial de Lisboa, Carlos Mendonça já tinha ideias claras sobre o posicionamento contra o regime. Estávamos em 1971, Salazar já tinha morrido, mas a Primavera Marcelista, que prometera uma abertura política do país, já se extinguia depois de algumas ilusões não cumpridas.

Influenciado pelo padre Paulo Ferreira, um padre de esquerda que lecionava na Escola Comercial e Industrial, adere aos ideais comunistas

O jovem caldense sofrera a influência do padre Paulo Ferreira, que lecionava na Escola Comercial e Industrial das Caldas da Rainha (hoje Bordalo Pinheiro). “Era um padre de esquerda, ligado à doutrina social da Igreja, à qual o meu irmão, José, também aderira pois estava ligado à JOC [Juventude Operária Católica]. Eu, pelos vistos, fazia umas redações na escola que chamaram a atenção da professora Alice Freitas, que as comentava com o marido, o Dr. Custódio, que, um dia, avisou o meu pai que eu devia ter algum cuidado para não dar demasiado nas vistas”, recorda.

Em 1977 numa sessão de esclarecimento do PCP na Mata Rainha D. Leonor, ao lado de Manuel Duarte, um histórico do partido

Mas foi com Eloísa Apolónia, uma mulher ligada ao PCP, que Carlos Mendonça dá os primeiros passos na política, ao ajudar na Comissão de Apoio aos Presos Políticos.
“Quando fui para Lisboa, o Instituto Industrial pululava de estudantes contra o regime. Fiz parte da associação de estudantes e foi aí que conheci o Rui Baltazar, com quem me integrei numa célula estudantil comunista. Tínhamos alguma atividade política, mas, dois anos depois, em 1973, fui viver para Alverca, porque arranjei emprego nas OGMA [Oficinas Gerais de Manutenção Aeronáutica]. Na verdade era mais do que um emprego: era uma forma de não ir à tropa nem à guerra colonial porque aquilo pertencia à Força Aérea e quem lá trabalhasse cinco anos ficava dispensado do serviço militar. Passei, assim, a trabalhador-estudante”.
Carlos Mendonça deixa-se seduzir pelo MRPP, que tinha uma forte implementação em Alverca, chegando a participar em algumas reuniões clandestinas. “Dei logo o salto para fora quando percebi que eles consideravam que o seu inimigo era a CDE [Comissão Democrática Eleitoral]”, frisa. Seguem-se ainda algumas reuniões em Moscavide com um grupo informal de jovens que viriam mais tarde a formar a UDP.
Acaba por aderir ao PCP. E fá-lo nas Caldas da Rainha através de Carlos Alberto, que conhecera no CCC (Conjunto Cénico Caldense) e o convida a entrar para o partido. “Mal sabia que ele era um infiltrado da Pide. Dizia que tinha uma casa na rua António Maria Cardoso [sede da polícia secreta] para ninguém desconfiar se o vissem naquela rua. Ele passou-me uma senha e contra-senha e foi assim que conheci o José Pedro Correia Soares, que ainda hoje é do partido, e que acabaria por ser preso mais tarde. Foi dos jovens que mais pancada apanhou da Pide”, sublinha.

O perigo de distribuir o Avante!
Uma célula é uma organização que tem um âmbito específico. Pode ser de uma fábrica, um bairro ou um grupo de estudantes. Carlos Mendonça integrou a célula das OGMA.
“Fazíamos atividade política clandestina. Basicamente, distribuíamos o Avante! e reuníamos para discutir a situação política e delinear ações de propaganda contra o regime e a guerra colonial”, explicita.
Tudo com muitos cuidados, o que implicava não repetir os caminhos e usar senhas e contra-senhas. E com nomes falsos. Carlos Mendonça era o “Baltazar”.
Distribuir o Avante! era das tarefas mais perigosas. “Tinha perfeita consciência que se fosse apanhado, era preso”, diz.
O percurso de militante clandestino do PCP dura menos de um ano. O 25 de Abril apanha-o em Alverca. Nesse dia ninguém trabalhou nas OGMA, ansiosos pelas notícias de Lisboa. Depois, foram os dias de euforia e na sua primeira viagem às Caldas, o amigo Graça Santos, que também era do partido, diz-lhe: “senta-te que te vou dar uma notícia que ficas de boca aberta – o Carlos Alberto foi preso, porque era informador da Pide”.
“Naquele momento percebi uma série de coisas. Tinha havido várias ondas de prisões na região e o Carlos Alberto fora o responsável. Ele tinha-se infiltrado no CCC, onde se concentravam a maioria dos opositores ao regime. E vim saber que eu próprio estava numa lista para ser preso, que incluía também o Jorge Sobral e o Graça Santos”.

Depois do 25 de Abril, é convidado para ser funcionário do partido

Depois da revolução, é convidado para ser funcionário do partido. É José Pedro Correia de Sousa, recém-saído da cadeia de Peniche que o convida.
“Ele ficou na minha casa, quando saiu da prisão, e aconteceu um episódio de que não me esqueço: fizemos um jantar e estava presente uma senhora cá das Caldas que depois acabou por dormir com ele nessa noite. O partido soube disso e ele teve de fazer autocrítica. Impressionou-me aquela moral tão restrita.”
O novel funcionário, “Baltazar”, tem 21 anos e começa por coordenar uma organização da órbita do PCP – o Movimento da Juventude Trabalhadora (MJT), composto por núcleos de jovens que eram aliciados para atividades progressistas, nomeadamente de apoio à reforma agrária e trabalho comunitário.
Carlos Mendonça compra uma motorizada Zundap e é com ela que visita os núcleos de Bombarral, Peniche, Óbidos, Benedita, Alcobaça, Mira de Aire e até Pombal.
“Uma vez, à noite, estava em Alcobaça, a mota avariou, não quis acordar nenhum camarada e acabei por dormir num vão de escada”, conta.
O curso de Engenharia ficou a meio. “Tinha aquela veia de juventude que achava que ia mudar o mundo e interrompi os estudos para me dedicar ao partido”. O caldense reconhece que o seu trabalho político era um autêntico sacerdócio, uma dedicação exclusiva à causa. ■

 

Memórias do verão quente e dos assaltos às sedes do PCP

Adesão ao PS é outro momento marcante no percurso político

Na sede do PCP em Pombal, ao lado da mãe. Carlos Mendonça era, então, responsável pelos concelhos do Norte do distrito

Carlos Mendonça apanhou o Verão Quente de 1975, o país em clima de pré-guerra civil. E os ataques de forças reacionárias às sedes do PCP. “Um dia recebi instruções para ir para Leiria porque iam atacar a sede do partido. Levei um revólver que o meu ex-sogro me tinha emprestado. O centro de trabalho estava cercado e tinha a tropa a defendê-lo”, relembra.
Fez-se acompanhar de um funcionário do Sindicato da Indústria Vidreira e infiltraram-se na multidão”. “Fingimos que éramos deles, mas tentando atenuar os ânimos. À noite dispersaram-nos e nós acabámos por entrar na sede. Um camarada nosso tinha-nos trazido granadas e umas G3 desmontadas. Dormimos lá nessa noite, em turnos, ainda cheguei a mandar uns tiros para o ar porque houve uns que subiram para os telhados. Mas no dia seguinte o oficial que estava a comandar o militares que nos defendiam disse-nos que não podiam continuar. Foi buscar uma Berliet e fomos todos evacuados”, explica. E a sede? “Assaltaram-na e queimaram tudo”, lamenta.

“Estou desiludido com o PS, enquanto partido de poder. Se calhar cometi dois erros na vida: um quando aderi ao PCP, outro quando aderi ao PS”

Carlos Mendonça

Situações idênticas aconteceram em Pombal, onde Carlos Mendonça também esteve a proteger a sede do PCP. Não pensava que, após o 25 de Abril, viesse a viver situações tão perigosas como durante a ditadura. Voltou a reunir clandestinamente, às vezes em pinhais, rondados por carros suspeitos e com o revólver sempre à mão.
“No caso de Leiria, não tenho dúvidas que a paróquia teve um papel determinante. A Igreja estava muito alinhada com o MDLP [Movimento Democrático de Libertação de Portugal] que era liderado pelo [general António] Spínola que queria fazer uma contra-revolução”, refere.
É também como funcionário do PCP que Carlos Mendonça faz a tropa. De pouco valeram os anos nas OGMA com a expetativa de não cumprir o serviço militar porque a revolução alterara as regras. O mancebo, que assenta praça em Leiria, chega a oficial miliciano e vai para Mafra. Mas nunca deixa de ser funcionário do partido e volta a ter atividade clandestina recebendo instruções para aderir aos SUV (Soldados Unidos Vencerão), um movimento revolucionário que somava exigências de direitos e melhores condições para os soldados. E tem um controleiro de peso: Raimundo Narciso, que tinha pertencido à ARA (Acção Revolucionária Armada), um movimento criado pelo partido antes do 25 de Abril.
Carlos Mendonça foi funcionário do PCP entre 1974 e 1980. “Saí por cansaço e porque o meu pai desafiou-me para ir trabalhar com ele [na firma Braz Mendonça da Conceição Lda]. E também porque achei que havia uma guerra por lugares de chefia entre os funcionários do partido. Eu tinha sido convidado para a DORLEI [Direcção Operacional de Leiria] e apercebi-me de algum incómodo de outros camaradas”, justifica.
Saiu de funcionário, mas não do partido. A rutura chegaria poucos anos depois por influência da Perestroika. “Um dia, numa assembleia de militantes nas Caldas, eu o Mário Xavier e o Neves Pedro propusemos discutir o que se passava na União Soviética e tudo aquilo que estava a ser revelado pelo Gorbachev, mas o camarada do comité central, o [José Augusto] Esteves, mandou-nos calar. O Neves Pedro entregou logo ali o cartão. Eu e o Mário Xavier ainda hesitámos, mas chegámos à conclusão que não havia outra saída que não fosse sair”, reforça. “Foi um processo doloroso. É mais ou menos como um padre que perde a fé. Mas nunca me senti arrependido. Nunca fiz nada de mal nem com má intenção. Pensava que era um caminho para transformar o mundo, mas não era”, afirma.
Anos depois, Carlos Mendonça, que hoje tem 67 anos, acaba por se aproximar do PS, onde se filia, a convite de Jorge Sobral e Mário Xavier. “Nessa altura o PSD estava no poder e entendi que devia militar à esquerda”, justifica o caldense, para quem o socialismo “é uma forma de dar continuidade” àquilo em que acreditou no PCP.
“Mas confesso que estou desiludido com o PS enquanto partido de poder, com os escândalos de corrupção e más governações. Faço parte de um grupo de reflexão que ainda tem esperança que se torne um verdadeiro partido socialista. Se calhar cometi dois erros na vida: um quando aderi ao PCP, outro quando aderi ao PS”, conclui. ■