“O Museu nasce em Peniche devido à vontade popular”

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O Museu Nacional da Resistência e Liberdade vai ser inaugurado na Fortaleza de Peniche no próximo dia 27. A diretora Aida Rechena explicou à Gazeta o que o visitante pode esperar deste novo espaço

O que podemos esperar do Museu Nacional Resistência e Liberdade (MNRL) que vai abrir 50 anos depois da libertação dos presos políticos da Cadeia do Forte de Peniche?
O nome indica muito o que vai ser o museu e é esse o foco. Vamos falar sobre resistência em prol da liberdade e contra um regime que nos privou da liberdade. Este é o grande ‘chapéu’ deste museu e a primeira exposição que vai ser inaugurada no próximo dia 27, por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril, chama-se precisamente ‘Resistência e Liberdade’, porque não quisemos fugir do nosso foco e da matriz a partir da qual o museu foi criado. As opções até poderiam ter sido muitas: podia ser o Museu da Cadeia do Forte de Peniche e aí os conteúdos podiam ser diferentes. Mas trata-se de um museu nacional, para já, tendo todo um enfoque sobre todo o território do país e temos que trabalhar a resistência a nível nacional.
O MNRL não vai abordar apenas a situação vivida em Peniche…
Não vai ser apenas sobre Peniche apesar de ter um enfoque muito especial porque estamos instalados na Cadeia do Forte de Peniche! Há todo um piso do museu só dedicado à vivência dos presos, sobre como viviam, como era o seu quotidiano, como aqui chegavam e o que lhes aconteciam cá dentro. Agora, a nossa missão maior é nacional.

E esta missão não vai “conflituar” com outros espaços museológico existentes no país, como, por exemplo, o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, em Lisboa?
O Museu do Aljube é diferente pois tem um carácter muito local, apesar de ter feito um trabalho excecional a nível nacional, com recolha de testemunhos, recebido arquivos e acervos. Mas acho que não chocamos uns com os outros porque é complementar e até ficarei muito feliz se for criado o Museu Resistência e Liberdade do Porto, na antiga cadeia da PIDE [polícia política do Estado Novo], porque há um movimento que está a reivindicar nesse sentido. O ideal seria todos trabalharmos em rede. Acho que temos públicos para estes espaços.

O Museu do Aljube pode ser uma ‘porta de entrada’ para trazer visitantes ao novo Museu em Peniche?
Sim. Como está em Lisboa faz também uma grande divulgação para outros polos. O facto de estarmos em Peniche não nos vai prejudicar em termos de público. Entre 27 de abril e 31 de dezembro de 2019, tivemos um nível altíssimo de visitantes, quase 133 mil, o que é muito para um museu, porque fica ao nível dos museus nacionais em Lisboa. Isso é muito importante!

Então tem uma enorme expectativa sobre o futuro do MNRL…
A expectativa é muito grande por ser um museu nacional, porque para a cadeia do Forte de Peniche vinham presos do país inteiro, o mesmo acontecendo no Aljube e no Porto. Em todas as cadeias do sistema prisional do regime, os presos circulavam: vinham para Peniche, iam para Angra do Heroísmo, para o Tarrafal [Cabo Verde], para desmembrar as redes e não terem possibilidade de contacto e para os castigarem. Acho que temos públicos para todos esses museus e mais… temos público e trabalho para aqueles pequenos núcleos museológicos que estão a surgir no país, como em Boquilobo [Torres Novas] na Casa do Humberto Delgado, um resistente assassinado pela PIDE, ou em Santarém, em memória de Salgueiro Maia, por exemplo. Isso é muito interessante para valorizar os patrimónios e fazermos uma rede.

Em várias intervenções públicas destacou que o MNRL nasceu da vontade popular. O que isso significa?
Isso tem sido uma interpretação minha de âmbito museológico. Sou museóloga de carreira e também de formação académica e tenho refletido sobre este processo de constituição deste museu. O facto da sua reivindicação ter nascido logo após a noite do 25 de abril, quando aqui estava concentrada à porta a população com cartazes a aguardar a saída dos presos e com a faixa que dizia ‘Peniche exige o Forte para visitar e não para ficar’, acho que aqui está a génese de algo do que se pretende. Ou seja, é o início de uma patrimonialização e duma apropriação deste espaço pela comunidade que durante todo o regime [político] não podia cá entrar, só se fossem presos.

Era uma parte da vila de Peniche que estava vedada aos seus habitantes, como se existisse uma fronteira…
Sim. É claro que aqui vinham algumas pessoas, nomeadamente senhoras que lavavam a roupa para a mulher do diretor da cadeia, familiares dos funcionários e guardas, fornecedores de comida… mas Peniche, em si, não podia entrar na fortaleza. Havia uma fronteira. Não sei se isso sempre aconteceu e esse dado histórico não tenho, nomeadamente do período em que era um forte militar, se a população podia entrar livremente. Mas parece-me que não. É um dado que carece, do meu lado, de alguma pesquisa.
Peniche passa a ter um museu nacional e a fortaleza vai ser novamente devolvida à comunidade. Mas o seu acesso volta a estar condicionado. Não é um pau de dois bicos?
Não me parece que seja assim. Acho que as pessoas ainda não estão a perceber, talvez por não terem tido um, que os museus nacionais agora não são como eram antes, porque já evoluímos muito para espaços abertos à comunidade, estabelecendo parcerias e trabalhando em cocriação e participação com a comunidade desde os anos 70, com a museologia social. Aquilo que se pretende é que efetivamente a sociedade participe no que se passa aqui dentro. Estamos abertos para a realização de atividades que nos queiram propor, desde que não choquem com a dignidade do espaço e a mensagem do que aqui estamos a transmitir que é a defesa da liberdade, como a realização de espetáculos musicais ou peças de teatro, conferências ou apresentação de livros, por exemplo. Temos como limite a defesa dos Direitos Humanos e o reconhecimento e gratidão para com os resistentes

O MNRL abre as portas num período em que cresce o populismo em todo o mundo e aborda um período muito crítico da nossa história em relação à liberdade dos portugueses, pelo que não vai ser um espaço ideológico neutro….
Os museus não são de direita, esquerda ou do centro e nem fica bem fazer isso. Vamos mostrar objetivamente, historicamente e factualmente que era uma prisão política e quem esteva aqui dentro preso e quais as ideias que defendiam. Isso é um facto e nós temos que o fazer. Apesar de considerar que os museus não devem ser neutros, mas creio que não se devem posicionar politicamente e sobretudo partidariamente. Tenho pensado muito sobre qual o limite e até onde podem ir os museus. E arranjei esta defesa e argumento que nos serve muito bem: a defesa dos Direitos Humanos! Assim estamos sempre salvaguardados e o museu só pode apresentar ações que vão nesse sentido

Que dificuldades encontrou na musealização do museu, nomeadamente com o acervo documental e da própria estrutura física da antiga cadeia do Forte de Peniche?
Vai ter uma exposição que vive muito dos testemunhos de quem cá esteve preso. Esta primeira exposição inaugural não vai ficar para sempre, porque vai ter outras exposições de longa duração. Antigamente fazia-se uma exposição permanente e não se fazia mais nenhuma durante décadas. Quando o museu considerar que os conteúdos já estão prontos para serem revistos e reatualizados, a exposição mudará. Quando olhamos para o acervo, que é essencialmente documental e em suporte de papel, dá uma enorme fragilidade à coleção em termos de conservação e ainda para mais em Peniche. Por isso optámos por digitalizar toda a documentação e assim podemos utilizar as reproduções com outra qualidade e usá-las. O que nós herdámos é, na maior parte, da Câmara Municipal de Peniche, que já tinha um acervo substancial e que transitou para o MNRL, enquanto que os restantes acervos estão a ser constituídos por doações de presos ou de familiares e cidadãos. Temos, por exemplo, uma coleção de jornais do 25 de abril e do 1º de Maio dada por um privado, coleções de postais que mostram a construção dos pavilhões prisionais como estão agora, porque foram mudados nos anos 50, e autocolantes da política a seguir ao 25 de abril. O que está na Torre do Tombo [em Lisboa] ali continua muito bem preservado, mas temos reproduções de documentos deste espaço, assim como da Fundação Mário Soares e Maria Barroso e da Biblioteca Nacional de Portugal. Devido ao clima agreste de Peniche, a sala de exposições vai ter uma boa climatização que, ainda assim, podia não ser suficiente para expormos documentos originais. Já quanto aos objetos são da nossa coleção, que irão rodar em espaços temporais muito curtos por causa da sua preservação, nomeadamente de algum artesanato prisional, original, que os presos faziam para passar o tempo e ocupar a mente, como sapatos feitos em linha, jogos de tabuleiro, palitos esculpidos de forma impressionante ou um diploma de um torneio de voleibol! São objetos de uma riqueza enorme que constituem o nosso fundo. Apelo às pessoas que tenham em casa todo o tipo de documentos que doem ao museu porque temos muito interesse.

No dia 27 de abril vai estar tudo pronto, de acordo com que foi previamente estabelecido, para a inauguração deste novo museu nacional?
Nesse dia vamos ter muito para visitar, mas não estará ainda a terceira fase das obras, que é a seguinte. Como tenho dito publicamente, faltam as obras nas instalações que foram ocupadas pela GNR, que não estavam nesta empreitada, que tem muito potencial para ter utilidade museológica e cultural. Assim como o piso 1 do Pavilhão A que será para a galeria de exposições temporárias, sendo que neste período iremos utilizar para esse efeito a sala que já utilizámos em 2019 para a exposição “Pelo teu Livre Pensamento”. E, ainda, as muralhas, que necessitam de uma intervenção para a sua consolidação, que requer um financiamento que calculo que seja gigantesco e que terá se ser faseado.
Está por resolver a questão controversa sobre a cor original das muralhas…
Não sei qual era a cor original da construção das muralhas. Creio que ainda haverá muito trabalho de estudo e investigação a fazer sobre esta fortaleza e que depois dará pistas, soluções e caminhos relativamente á intervenção que se irá fazer. Sei que há pessoas preocupadas com a alteração recente da cor da fachada, que era de um amarelo mais torrado como ainda estão os panos de muralha cá dentro e no Fortim Redondo, que passou para uma cor mais clara. Não me parece que, para já, seja uma situação grave, porque havendo vontade é reversível e é uma situação que em breve será pacificada relativamente à comunidade.

Qual é a sua expectativa para o número anual de visitantes?
Há muitos visitantes apenas para a fortaleza. Como diretora deste complexo que é o museu e a fortaleza, ficaria muito feliz com 200 mil visitantes por ano, mas creio que não iremos atingir esse número em 2024. Vai ser implementada uma bilhética e em 2019, quando recebemos cerca de 130 mil visitantes, as pessoas ficavam surpreendidas por não se cobrar bilhete. A expectativa é que as pessoas não estranhem que haja uma bilhética, que é normal para a entrada e que foi uniformizada para a maioria dos museus nacionais. Tem tantas reduções e isenções que, com certeza, as pessoas vão encontrar uma alínea onde se vão enquadrar ou para serem isentos do pagamento ou reduzir o preço. Sei que há muita preocupação, sobretudo das pessoas de Peniche, para o pagamento do bilhete, mas aos domingos e feriados será gratuito. A entrada será livre para o memorial de homenagem aos presos políticos, assim como à cafetaria e loja do museu. Os espaços de convivência social estarão abertos gratuitamente.

A cidade de Peniche está preparada para receber anualmente 200 mil pessoas que visitem o MNRL?
Se recebemos em 2019 cerca de 130 mil pessoas também conseguiremos receber 200 mil. A Fortaleza de Peniche sempre foi um polo de atração desde que foi aberta ao público, com o encerramento da cadeia política. Agora temos a mais-valia de termos musealizado a fortaleza com percursos e visitas-guiadas explicativas, podendo a pessoa ser acompanhada nesse sentido. Acrescendo a isso ainda temos um Museu Nacional de Resistência e Liberdade numa cidade como Peniche, que é uma terra classificada por aqueles que foram presos como uma terra da resistência e de solidariedade. Ainda tem esse epíteto que outras terras que são de resistência mas que não têm. Temos um painel explicativo em exposição onde chama ‘Peniche: a Terra da Resistência e da Solidariedade”, por causa do movimento que existia de apoio às famílias dos presos, nomeadamente das mercearias que os comerciantes ofereciam e não cobravam dinheiro porque a comida e o tabaco era para os presos. Há que valorizar e Peniche tem que ter orgulho nisso! A grande bandeira de Peniche é que somos todos – e não só o museu – uma terra de Resistência e Solidariedade e de Liberdade.

São mundialmente célebres as fugas de presos políticos, como de Álvaro Cunhal e Dias Lourenço. Vai também o MNRL captar público estrangeiro?
O fato de estar aqui o museu numa cadeia do fascismo, só isso por si já é um motivo de interesse internacional. Tenho sentido isso quando me pedem para apresentar o museu no exterior, porque as pessoas ficam surpreendidas, causando um grande impacto a apresentação pública deste espaço: a cadeia, os presos políticos, 48 anos de regime totalitário, ditatorial e fascista. Tudo isso tem um grande impacto e poder de atração no exterior, porque internacionalmente há esse movimento de musealização destes espaços de resistência e do sofrimento relacionado com a política, nomeadamente na Alemanha, França, Itália e Polónia. Na América Latina, a tendência é para os espaços relacionados com as ditaturas com os museus dos Direitos Humanos. Há um movimento global para o surgimento destes museus.

Recebeu alguma garantia do Ministério da Cultura sobre a concretização da terceira fase das obras?
Ainda não falámos sobre isso. A nova entidade pública-empresarial Museus e Monumentos de Portugal [criada pelo Ministério da Cultura] começou a trabalhar a 1 de janeiro, pelo que não houve ainda oportunidade para discutir estes assuntos. ■