A Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar de Peniche (ESTM), recebeu, a 14 de Março, uma sessão que visou assinalar o 36º aniversário do levantamento do Povo de Ferrel contra a ameaça da instalação de uma Central Nuclear nos anos 70 do século passado.
A iniciativa contou com a parceria do Festival de Cinema International Uranium que decorrerá em Junho no Brasil e é dirigido por um jornalista e uma socióloga que estiveram em Portugal para realizar documentários relacionados com a energia nuclear no nosso país(ver caixa).
A sessão na ESTM contou com duas dezenas de pessoas que assistiram à projecção de três filmes relacionados com temas nucleares e ainda ficaram a conhecer um pouco melhor o que aconteceu em Ferrel em 1976 e 1977.
António José Correia e Silvino João, respectivamente, presidentes da Câmara de Peniche e da Junta de Freguesia de Ferrel assim como António Eloy, ambientalista e especialista na área da Energias em Portugal e José Luís de Almeida Silva, director da Gazeta das Caldas, foram os quatro intervenientes na sessão e que tiveram um papel activo nos acontecimentos de Ferrel: Desde a manifestação da população local em 1976 até ao Festival Pela Vida em 1978, organizado pelo nosso jornal e mais organizações de todo o país.
Os oradores relataram como foram preparados os encontros, como se fizeram reuniões e como afinal se organizou um movimento de cidadania e se recusou uma decisão que, por certo, teria hoje consequências para toda esta região na qualidade de vida destas populações.
A sessão foi presenciada por alguns (poucos) alunos e professores da ESTM, bem como outras pessoas, que assistiram à projecção dos filmes “Urânio em Nisa Não!” que estreou este ano e é da autoria de Norbert Suchanek, produzido por Márcia Gomes de Oliveira.
Segundo os autores, Nisa é um exemplo de resistência a uma ameaça à sustentabilidade local pois nesta pequena vila, no norte alentejano, cidadãos e cidadãs manifestaram-se contra a ameaça da mineração de urânio, antes que esta se concretizasse.
Foi também vista a curta-metragem “Yellow Cake”, realizada por Brock Williams, que de 2009 e que foi financiada pelos Cidadãos do Colorado Contra Lixo Tóxico.
O documentário relata a contaminação, o alto consumo de água, a geração de resíduos tóxicos e radioactivos, os custos do contribuinte americano com os subsídios do governo a esta exploração, bem como os impactos na saúde e as emissões de CO2 que são causados pelo ciclo do combustível nuclear.
Finalmente “Pedra Podre”, é um documentário de 1990, o primeiro sobre as centrais nucleares brasileiras – Angra 1 e Angra 2 – na região da Mata Atlântica, a sul do Rio de Janeiro. Com algum humor e ironia, o filme mostra que, em caso de um acidente nestas centrais nucleares, a segurança oficial e o plano de evacuação para proteger a população local e os turistas são, no mínimo, uma piada. Pior: Angra 1 e 2 foram construídas numa praia a que a população indígena Guarani deu o nome de “Itaorna”, o que significa “Pedra Podre”.
O filme de 26 minutos mostra a tremenda irresponsabilidade (e os elevados custos financeiros) que são inerentes à instalação daquelas centrais nucleares.
Um dos pioneiros da luta anti-nuclear de Ferrel
Joaquim Jorge, 71 anos, é natural de Ferrel e foi um dos activistas desta luta, tendo também querido marcar presença nesta sessão comemorativa . “O meu pai tinha um terreno que confinava com aqueles terrenos baldios, designados do Moinho Velho”, contou explicando que era naquele local onde estavam a iniciar-se as pré-estruturas da construção da futura central nuclear, em 1976.
“Aqueles eram (e são) terrenos baldios”, esclareceu o activista que já na época era o contacto da Gazeta das Caldas e que descrevia para este semanário o que ia acontecendo naqueles dias quentes da década de setenta do século passado.
Joaquim Jorge recordou que as movimentações relacionadas com a instalação da energia nuclear em Portugal vinham desde a segunda parte da década de 60 e nessa época acompanhava o seu pai que tinha uns terrenos para aquela zona de Ferrel. “Eu via lá homens a trabalhar e perguntava-lhes para que era aquilo e tanto questionei que lá me disseram que era para produzir electricidade e que iria ser muito bom para a região”, relembrou Joaquim Jorge.
Posteriormente e depois do 25 de Abril foi-se informando com amigos de Ferrel que estavam a estudar em Lisboa, bem como com José Luís de Almeida Silva que já então dirigia a Gazeta das Caldas e que lhe mandavam literatura sobre energia nuclear.
“Comecei a ver que era algo que não nos interessava e fiz cartazes explicativos que deixava nas tabernas e nos cafés com o intuito de informar as pessoas que aquela opção não seria a melhor”, contou o participante que a partir de então se fez um activista anti-nuclear.
Recorda-se de interpelar o ministro Walter Rosa em 1976 sobre este tema num comício eleitoral e de ter até provocado algum alarido dado que a construção da futura central nuclear em Ferrel era o tema quente daqueles dias.
Joaquim Jorge considera que teve um papel importante nesta luta pois em 1976, antes da existência de grupos e associações organizados, andou sozinho a esclarecer a população de que aquela era uma má opção para a sua aldeia. E no dia do levantamento, 15 de Março de 1976, Joaquim Jorge volta a ter um papel de destaque pois foi ele que pediu à sua mãe, então encarregada da igreja da vila que tocasse a fogo (muito depressa) o que levou à reunião do povo de Ferrel que então se encaminhou para o Moinho Velho e não deixou que as obras avançassem. “Fomos todos, uns com forquilhas, outros com enxadas, uns a pé, outros de tractores ou de carroça…, aquilo parecia uma invasão!”, recordou. Só depois do levantamento é que foram constituídos vários grupos de luta anti-nuclear, como a CALCAN (Comissão de Apoio à Luta Contra a Ameaça Nuclear).
Joaquim Jorge lembra que foi de facto uma decisão acertada pois há várias alternativas limpas para a produção energética, sem prejuízo para as populações.
Os terrenos baldios onde o Estado queria iniciar a implementação de uma central nuclear estão hoje todos cultivados por quem quis ocupar naquela altura e hoje “são a principal fonte de receita com base nos hortícolas de Ferrel”, disse Joaquim Jorge.
Silvino João, o presidente da Junta de Ferrel fez ainda questão de referir que nas proximidades do local, ou seja, na mesma praia – das Azenhas – que sofreria as consequências de ter uma central nuclear, foram agora colocados os dispositivos relacionados com a energia das ondas.
Por seu lado, o edil António José Correia salientou que há 36 anos houve um grande envolvimento local e também um movimento de cidadania de proximidade pois acabaram por se chamar especialistas para abordar a questão da energia nuclear e demonstrar que esta prejudicaria toda a região e o bem-estar das populações.
O autarca era então estudante universitário e fazia um jornal O Arado, então policopiado, que na altura da luta de Ferrel teve um papel importante no esclarecimento contra o Nuclear na região.
O edil sublinhou que hoje Peniche tem feito protocolos para o desenvolvimento no seu concelho de energias sustentáveis, como a energia eólica e também das ondas. “Esta última, a poucas centenas do local onde queriam instalar a central”, rematou o presidente da Câmara.
Natacha Narciso
nnarciso@gazetadascaldas.pt
Socióloga e jornalista dirigem festival e são autores de documentários sobre o nuclear em Portugal
Estiveram recentemente nas Caldas o jornalista Norbert Suchanek e a socióloga Márcia Gomes de Oliveira que são os responsáveis pelo Festival Internacional de Uranium no Brasil.
Ele tem 48 anos, é jornalista das áreas do Meio Ambiente e Direitos Humanos e já trabalhou para várias ONG’s, como o Greenpeace, e desde 1988 que se tem interessado pelos temas anti-nucleares.
Ela tem 41 anos, é socióloga Márcia Gomes e fez a sua dissertação de mestrado sobre a área indígena, onde vivem os Guarani – que foi o local escolhido para a instalação das centrais nucleares. Ambos vivem desde 2006 no Rio de Janeiro.
Foram os autores do documentário sobre Nisa e também decidiram realizar outro sobre a luta de Ferrel que será estreado na próxima edição deste festival que terá lugar entre 28 de Junho e 14 de Julho. Esta edição contará com 60 filmes de todo o mundo sobre as mais variadas problemáticas ligadas à energia nuclear.
A primeira edição deste festival decorreu em 2011 e contou com 40 filmes. Um ano depois já contam com mais 20 propostas. À pergunta se há espaço para um festival só sobre o tema nuclear responderam: “Sim, as pessoas não têm a noção da complexidade do tema e dos vários aspectos do quotidiano que têm algo relacionado com este tema”.
Basta pensar que uma máquina que enche garrafas de cerveja, todas com a mesma medida, “possui um componente radioactivo e por isso, no futuro, será um lixo radioactivo, assim como, por exemplo, as máquinas que tratam pacientes de algumas doenças”. Já houve vários casos de acidentes em vários países por causa deste lixo radioactivo.
“Constatamos que há uma grande ignorância sobre estes temas e o festival também tem essa função pedagógica pois cada filme é uma aula sobre determinado aspecto relacionado com a energia nuclear”, disse o casal.
Quando descobriram a luta que a população de Nisa fez para evitar a mineração de Urânio, logo decidiram vir a Portugal e filmar um documentário sobre o facto. Quando realizaram este trabalho conheceram António Eloy, especialista em ambiente e energias que lhes contou o que se tinha passado em Ferrel. “A ideia de uma população vir para a rua se manifestar é fantástica!!”, disseram Norbert e Márcia que quiseram logo fazer um documentário sobre Ferrel e que vai estrear no próximo festival.
O casal entrevistou José Luís Almeida Silva e ficou surpreso com o facto de em 1977 o semanário Gazeta das Caldas ter organizado o Festival pela Vida na sequência da luta contra a instalação da central nuclear em Ferrel. “É algo formidável e extraordinário e precisa de ser conhecido”, disseram os autores.
Todos os acontecimentos que tiveram lugar em 1976 e anos seguintes e que fizeram com que a central não fosse instalada “é uma realidade que deve ser conhecida no mundo inteiro pois deverá ser um caso único”, disse o casal.
Norbert Suchanek e Márcia Gomes de Oliveira acham ainda que Portugal “poderá ter um papel importante na luta anti-nuclear, promovendo informação para o mundo lusófono”.
N.N.