“13” é o título da peça que os Peripécia Teatro apresentaram na noite de 13 de Maio no Centro Cultural Gonçalves Sapinho, na Benedita (Alcobaça). Com um texto divertido e descontraído, e com muita habilidade no uso dos objectos e sons, a peça faz críticas não só à Igreja como à própria sociedade. Em palco é apresentada uma visão alternativa de factos que marcaram a História recente.
“13” conta a história dos preparativos para lançar um grande produto comercial. Corria o ano de 1917 quando o Papa pediu “fundos para desenvolver um produto: as aparições marianas”.
Do ponto de vista da viabilidade, Portugal é o local certo: “não há petróleo, é um país pobre que só vai ter futuro quando vender tudo aos estrangeiros, onde os bancos vão, daqui a uns anos, dar problemas, é um país que tem mar, mas só com três ou quatro sardinhas, que gosta de comer bacalhau, mas tem de o ir pescar à Noruega”.
Um plano viável, com baixo risco de investimento
Além disso, o risco de investimento é baixo: as aparições foram vistas por três crianças num país com 80% de taxa de analfabetismo. “Tudo potenciais clientes”, celebra o Papa, prevendo a construção de um santuário gigante, um centro comercial gigante, “tudo gigante… até um terço gigante”.
Para credibilizar o plano, o Papa encomenda um poema a um poeta preso por pedofilia, explicando-lhe o objectivo: “é para as aparições da Virgem”. Responde-lhe o poeta: “gosto de tanto de virgens” e conclui o Papa: “gostamos todos…”.
Além do poema o Papa encomenda também uma música. A primeira versão apresentada era muito moderna para o país em causa, a segunda, que usava ritmos de Zeca Afonso, era muito revolucionária, e a terceira, em tons de fado, ainda não tinha a tristeza, culpa, sofrimento e sangue requeridos. Quando o artista (para fugir à condenação papal) adiciona essas características à música, o Papa exclama: “é esta! É este o caminho para a fé! E não te esqueças do sangue!”.
O caminho para os fiéis poderem andar de joelhos também é criado. “Com pedras para fazer sangue”, pediu o sumo-pontífice. O centro comercial foi projectado, bem como o túnel para reaproveitar a cera das velas e um perfume que salientava as características do local e que podia também ser desodorizante e laca.
Na peça Portugal é apresentado como o fim do mundo, o lugar onde Judas perdeu as botas.
Lúcia é torturada pelo Papa para dizer que o que tinha visto – um ser pequeno com suspensórios e um saco na cabeça, com uma luz vermelha ao peito e óculos de sol – era afinal a imagem da Virgem Maria, num vestido branco comprido de onde se salientava o coração vermelho. Depois, Lúcia é mandada para o Porto, para não falar com ninguém.
Já com o fenómeno propagado, começam a aparecer os fiéis e também todas as perguntas e pedidos. “A Virgem já foi a Lisboa? Usa sempre a mesma roupa? E come batatas com carne?”, perguntam. “A Virgem tem dentes? Se tiver uma dentadura a mais que me dê”, pede um. “Que faça do meu filho banqueiro, para ganhar muito dinheiro, ou então que faça dele futebolista, para ganhar muito dinheiro, ou então rico, para ter muito dinheiro”, pede outra.
Arrancam-se ramos da azinheira – que até estava virada para o lado contrário às aparições -, porque dão sorte. Mais tarde arranca-se a azinheira para erguer o santuário e depois vendem-se terços e velas, guarda-chuvas e cromos digitais dos pastorinhos, do Papa e da Virgem.
“Qual é o caminho da fé?” pergunta um crente. “Depende do donativo… Hummm… Donativo pequeno… Caminho grande! Por ali!”, responde o Papa.
Mas, a certa altura, o espectador percebe que, afinal, a criação do Universo não é mais do que um videojogo intitulado “Big Bang 2.0”, que é jogado por uma criança chamada Jesus, que navega com os pais, Maria e Deus, numa nave espacial.
As aparições são os momentos em que a criança pára para fazer uma necessidade fisiológica na Terra. Cada vez que o faz, aparece uma igreja ou um santuário. Ficamos a sabê-lo numa conversa dos extraterrestres com o criador do videojogo (Lucifer), que alerta: “os terráqueos são um vírus”.
Excertos de Fernando Pessoa sobre Fátima
“13” é uma co-produção dos Peripécia Teatro com o município de Alcobaça e o Teatro do Avesso. Reúne em palco três actores vestidos de igual (calças cinzentas, com suspensórios por cima de uma camisola branca) e que interpretam várias personagens.
Com sacos de plástico nos bolsos, imitam o som da chuva. Com os mesmos sacos recriam a mitra branca do Papa e a barba preta de um rabino. Usam também guarda-chuvas com os quais representarem um microfone, um gravador ou um livro. É ainda com os chapéus de chuva que criam o cenário: espalhados pelo palco os chapéus permitem aos actores andarem (de gatas) pelo palco, sem que o público perceba por onde.
A dado momento, em palco, aparece Fernando Pessoa, dizendo excertos de um texto inédito revelado pelo historiador José Barreto em 2008. “Fátima é o nome de uma taberna de Lisboa onde às vezes… eu bebia aguardente. Um momento… Não é nada d’isso… Fui levado pela emoção mais que pelo pensamento”.
Fátima é o local onde três crianças viram aparecer a Virgem Maria, “assim o diz a voz do povo da província e “A Voz” sem povo de Lisboa”.
“Como passou a haver “liberdades em vez de “liberdade”, assim também passou a haver crenças em vez de crença, fés em vez de fé, e vários outros plurais ainda mais singulares”, lê-se no texto, que diz ainda “o facto é que há em Portugal um lugar que pode concorrer vantajosamente com Lourdes. Há curas maravilhosas a preços mais em conta” e que “o negócio da religião a retalho, no que diz respeito à Loja de Fátima, tem tomado grande incremento, com manifesto gáudio místico da parte dos hotéis, estalagens e outro comércios desses jeitos – o que aliás, está plenamente de acordo com o Evangelho, embora os católicos não ousem lê-lo – não vão eles lembrar-se de o seguir!”.
“Consigo separar o lado artístico do lado religioso”
No dia 13 de Maio (com o Papa em Fátima, o Benfica tetracampeão e Salvador Sobral a vencer na Ucrânia) assistiram a esta peça na Benedita perto de 100 pessoas, de diferentes gerações, que se riram à gargalhada.
Paulo Valentim é beneditense e um amante de teatro. “Já tinha ouvido falar da peça e do grupo, acho que tem um tema apelativo e que se ajusta por ser o centenário das aparições e a canonização dos pastorinhos”, disse à Gazeta das Caldas, elogiando as interpretações dos actores.
“O texto é um bocado pesado mesmo para quem não acredite muito, mas está fantástico”, salientou este católico praticante que não se sentiu nada ofendido. “Consigo separar o lado artístico do lado religioso”, explicou.
Segundo o jornal Público, o Peripécia Teatro admitiu que houve várias autarquias que recusaram o seu espectáculo por a considerarem provocatória em relação a Fátima e às crenças religiosas e pela agitação que tal poderia trazer em ano de eleições autárquicas.