Mais de uma centena de pessoas quis saber e debater qual o futuro para a Fortaleza de Peniche, numa reunião realizada no auditório municipal no dia 28 de Dezembro. A concessão ou não de uma parte a privados continua a ser um dos pontos de discórdia, ainda que a preservação da memória seja uma bandeira de ambos os lados. No final, uma reivindicação da autarquia e da própria população ao Governo: “se a Fortaleza saiu do programa Revive, tem de haver um investimento forte do Estado Central”.
A Fortaleza de Peniche tem sido alvo de intensa polémica. Entre os que a querem nas mãos do Estado e os que a querem privatizar, poucos pontos em comum se encontram. A necessidade de intervir naquele monumento representativo da luta contra o fascismo será dos únicos e esse é óbvio.
Qualquer um que visite a Fortaleza constata os espaços fechados e zonas desprezadas. É possível notar o abandono a que o monumento está sujeito.
De um lado defende-se a sustentabilidade através de uma renda que viria de um hotel de luxo, do outro o investimento estatal que possibilite a sustentabilidade.
A própria população está dividida, mas mais que isso, está ansiosa. O assunto não fere apenas as susceptibilidades dos penichenses, há muitos descendentes dos cerca de 2500 presos políticos que ainda se recordam da prisão política.
Exemplo da importância da fortaleza são as 6250 pessoas que assinaram a petição pública pela não concessão ou as 1225 que assinaram para a voltar a colocar no programa Revive.
No dia 28 de Dezembro realizou-se uma reunião de auscultação da população no auditório municipal. Promovido pela autarquia e pela assembleia municipal, o encontro serviu também para informar tudo o que tem sido feito.
Notando que havia sido ouvido antes da inclusão no programa Revive, António José Correia, presidente da Câmara de Peniche, explicou que mostrou ao Governo a estranheza por o mesmo não ter acontecido antes da retirada do monumento.
“Entregámos um relatório feito pelos serviços técnicos da Câmara com as intervenções urgentes com uma estimativa de custo de 5,5 a 6 milhões de euros”, informou.
Gazeta das Caldas teve acesso a parte do relatório onde estão previstos 4,2 milhões de euros para “demolições, reforço da estrutura, novas lajes de cobertura, paredes, pisos, caixilharias e portas exteriores e interiores, revestimentos de pisos, rede eléctrica, telecomunicações, gás, redes de águas e esgotas e pinturas interiores e exteriores em cerca de seis mil metros quadrados”.
No mesmo documento refere-se a necessidade de 100 mil euros para “impermeabilizar as lajes de cobertura com tela betuminosa cruzada em cerca de 3700 m2” e de 600 mil euros para “reparações dos blocos actualmente em uso, incluindo reboco e pintura em paredes e tectos, onde necessário, substituição de pisos, redes de águas e esgotos e pinturas de interiores e exteriores em 1800 m2”.
Ainda no que é mais urgente salienta-se “a reparação e estabilização dos troços da muralha em desagregação, incluindo a guarita”, que custa 300 mil euros. Valor semelhante será necessário para “a ligação às redes de águas e esgotos e reparação dos espaços exteriores pavimentados e ajardinados”.
A 28 de Novembro surgiu uma proposta da administração central em duas frentes: a patrimonial e a de futura função. A primeira traduz-se na elaboração de um relatório de diagnóstico ao estado de conservação do monumento para posteriormente fazer uma estimativa, esquematizar prioridades e prever uma calendarização.
Esta primeira fase “já está em curso, tendo já sido realizadas três visitas técnicas”. O relatório deve estar concluído no final de Janeiro.
No mesmo documento, e relativamente à futura função, foi proposta a criação de um grupo de trabalho composto pela DGPC, secretaria de Estado do Turismo, representantes da Câmara de Peniche e da academia e pessoas de reconhecido mérito cultural.
Daí deverá sair “uma função consentânea com a sua história e que assegure a sua viabilidade”.
A autarquia definiu que o grupo deveria ser composto pelo presidente e representantes de três forças políticas. Quanto ao representante da academia, escolheram João Bonifácio Serra, pelo seu conhecimento e pela realização de outros projectos, como a Magna Carta de Peniche.
Por outro lado, a autarquia também sugeriu que fossem integrados três membros da Assembleia Municipal e que a apresentação das conclusões se realizará a 25 de Abril do ano que agora começa.
Já no fim da reunião José António Correia, e correspondendo a uma das sugestões do público, anunciou a criação de uma plataforma participativa e informativa no site da Câmara.
PCP e PS contra a concessão, PSD a favor
O PCP, por Rogério Cação, afirmou que “pese embora tenha sido dito de imediato que a cedência respeitaria a essência dos monumentos, todos sabemos que as coisas não são tão lineares assim”.
Na sua óptica “tudo o que tem sido dito peca por extremismo: por um lado os que não querem que se faça nada, por outro os que pensam que se deve mudar tudo”.
Assim, defendeu, “não se pode ficar preso ao passado”, mas o futuro deveria passar por tornar a fortaleza no “grande pólo cultural do concelho, privilegiando a memória”. É que “há pesos de memória distintos” e “a memória daquele espaço é inegociável”.
O autarca recordou que o próprio alterou a sua primeira posição e justificou que isso se deveu a que “passados estes anos todos, pela primeira vez, o Governo tenha assumido a responsabilidade de travar a degradação” e elaborar uma proposta de funções futuras.
“Não será legítimo perguntar porque é que a ENATUR e o grupo Pestana nunca fizeram um esforço sério?”, questionou, bem como a conciliação de um hotel de luxo com um espaço de visitação.
Américo Gonçalves, do PS, concordou com grande parte do que havia sido dito pelos comunistas. Lembrou que no âmbito do Portugal 2020 podem ser incluídas verbas para a muralha e afirmou que “se lá estivesse um hotel, se calhar muitos de nós nunca mais lá poderíamos entrar”.
O PSD defendeu a concessão da fortaleza, notando que a entrada no programa Revive aconteceu por unanimidade. “Não o defendemos por capricho ideológico, temos três razões essenciais e uma talvez mais acessória”, esclareceu Filipe de Matos Sales.
As três primeiras são que “nem a Câmara nem o Estado têm dinheiro e esta solução permite que dinheiro privado faça uma parte do trabalho com evidente benefício público, a unidade hoteleira trará vida permitindo dar nobreza a todos os espaços, incluindo aquele que preservará a memória daqueles que ali sofreram” e porque “haverá um evidente impulso na economia local”. A acessória é “por coerência”.
Alertou que “o fundo de salvaguarda de património cultural é de apenas 400 mil euros” e queixou-se de “um jogo viciado em que sabemos o que não vai acontecer” e de, “em vez de um cabaz de sardinhas, Peniche ter ficado apenas com o cabaz”.
Maria Rodrigues, presidente da Assembleia Municipal, explicou que o órgão a que preside já apresentou duas moções de apoio à inclusão da Fortaleza no programa Revive. Disse que provavelmente será marcada nova sessão extraordinária.
No encerramento dos trabalhos a mesma notou que há um “espectro largo de opiniões e que todas se respeitaram” e referiu que “não se vão retirar conclusões desta reunião”.
UMA POPULAÇÃO DIVIDIDA
De imediato quase duas dezenas de cidadãos quiseram dar a sua opinião. Alina Sousa, professora aposentada que escolheu morar em Peniche, perto da Fortaleza, referiu que o museu “tem grandes limitações” e que não vê compatibilidade entre um hotel de luxo e um espaço de visitação.
João Avelar disse que esta reunião representa “o já habitual nim”. Recordou um relatório sobre a fortaleza que ajudou a elaborar em 1985 em que se faziam várias recomendações à autarquia e afirmou: “o que daqui resultou, está à vista”.
João Neves fez notar que o Revive era um programa para imóveis não utilizados e disse que, numa comparação com os outros seleccionados, este se diferencia por ser um símbolo da repressão fascista.
“Demolir o bloco A e B é destruir a memória”, afirmou, sugerindo que se abandone a ideia de hotel e se encontre outra, “como o convento de São Bernardino”.
Silvina Miranda, filha do primeiro preso político a sair em liberdade a 27 de Abril de 1974, disse que “o Forte deve pertencer ao Estado, ao povo” e revelou estar “muito contente” porque a concessão não avançou.
António Morais questionou “qual é o monumento onde está uma pousada e que os portugueses possam visitar?” e defendeu que esta é “uma oportunidade única para criar um núcleo museológico”.
Adriano Constantino, arqueólogo que pertence à associação Patrimonium, questionou porque é que a referida entidade, com vinte anos de actividade, nunca tinha sido chamada para este tema e disse que a fortaleza “é uma mão cheia de nada”.
Defendeu que aquele espaço deve ser um pólo cultural e albergar um arquivo municipal acessível a todos.
Adelino Ferreira argumentou que “defender a devolução da fortaleza aos penicheiros não é ceder a privados”, porque depois não a podem visitar. “Deve ser um museu da resistência”, considerou.
O empresário Luís Cardoso apontou “um comércio nas lonas, com cada vez mais lojas a fechar”, para defender que “Peniche precisa destes investimentos”.
Mostrou a sua insatisfação por “ano após ano ver possíveis investimentos a serem perdidos” e pediu para que “não brinquem com o futuro de Peniche”.
Eulália Miranda mostrou-se contra a criação de um hotel, porque “não vai resolver a situação económica de Peniche”.
Considera que em qualquer outro país o edifício era mantido para dar a conhecer a História e disse que “é obrigação do Estado melhorar a Fortaleza”.
Um outro penichense que se identificou como Rui, disse estar muito triste porque naquela noite estavam todos naquela sala “a chover no molhado, quando há 30 monumentos a festejar a sua reabilitação”.
Daí que defenda a inclusão no programa Revive porque “não é com um ou dois milhões para tapar buracos que o problema fica resolvido”.
Carlos Mota mostrou-se disponível para se manifestar pela preservação da memória, mas considerou que “não é essencial se há ou não um hotel”. Afirmou que “o programa Revive disponibiliza os edifícios, mas não tem dinheiro”.
António Coutinho considerou que este é “um programa de crise, porque nenhum governo que pudesse tratar o seu património aceitava isto”. Apontou Flor da Rosa como um bom exemplo de concessão e recordou as críticas de Siza Vieira ao museu, defendendo a aposta num museu do mar.
Luís Almeida fez notar que ninguém havia dito que a memória não deve ser preservada. “Gostava que fosse uma pousada, mas se não for que se faça algo”, exprimiu.
Manuel Salvador lembrou a falta de emprego em Peniche, numa altura em que até o curso técnico de turismo saiu da universidade local, para defender a concessão a privados. “Há uma diferença entre concessionar e dar”, notou.
António Sales disse que apesar da Pousada de Óbidos não ser visitável, à sua volta acontecem eventos. “Podíamos fazer o hotel e o resto”, disse, defendendo que “o programa Revive era uma luz ao fundo ao túnel”.
Forte da Consolação vai ser reabilitado
No fim da reunião, António José Correia, presidente da Câmara de Peniche, salientou que o concurso público de reabilitação do Forte da Consolação abria no dia 30.
O espaço será explorado pela Câmara e terá um centro de interpretação do património cultural concelhio que versará sobre duas temáticas: os patrimónios geológico e geomorfológico e histórico-militar.
Além disso haverá um espaço cultural multiusos, por exemplo para conferências, com um serviço de cafetaria.
O valor base da obra é de cerca de 500 mil euros que incluem trabalhos de alvenarias, revestimentos de paredes, tectos e pavimentos, carpintarias, instalação de equipamento sanitário, impermeabilizações, isolamentos, estabilidade, redes de abastecimento de águas e drenagem de esgotos e águas pluviais, segurança contra incêndio, instalações eléctricas e de telecomunicações, trabalhos de paisagismo e obras de conservação e restauro.
A empreitada é financiada em 85% por fundos comunitários.