Programa extenso e complicado no 1º ciclo preocupa pais e docentes

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O actual programa curricular do 1º Ciclo é demasiado extenso e complicado. Este é um problema que preocupa encarregados de educação, professores e também psicólogos que acompanham as crianças. O excesso de matéria e a sua complexidade, desfasada do nível de desenvolvimento intelectual das crianças, sobretudo nas disciplinas de Português e Matemática, têm sido associados a problemas como stress, ansiedade, falta de auto-confiança e mesmo desinteresse escolar.
O insucesso do modelo implementado pelo ministro Nuno Crato (do governo PSD) já levou o actual executivo a estudar alternativas, que vão entrar em vigor no 1º ano já no próximo ano lectivo, com um currículo mais curto e espaço para os agrupamentos ajustarem uma parte ao seu próprio contexto.

Joana Queimadela, presidente da Associação de Pais e Encarregados de Educação do Agrupamento de Escolas Raul Proença, tem um filho com 13 anos, aluno do 7º ano, e outro com seis, no 1º ano, e conhece as duas realidades, pré e pós reforma.
“Os currículos estão cada vez mais densos, lecciona-se matéria como se eles tivessem 18 anos”, afirma. O grande problema, na opinião de Joana Queimadela, é que não há tempo em contexto de sala de aula para consolidar a aprendizagem, o que acaba por ter um efeito bola de neve que vai adensando os problemas ao longo dos anos.
A presidente da Associação de Pais realça que a falta de tempo dos professores para consolidarem a matéria exige que sejam os pais a fazê-lo sob pena das crianças perderem o fio à meada, mas também isso acaba por gerar desigualdade, uma vez que nem todos os pais têm o tempo necessário, ou os conhecimentos, para ajudarem os filhos.
Por isso, o insucesso muitas vezes “não tem a ver com a capacidade do aluno, mas com a falta de tempo em contexto de sala de aula para dar a matéria e a consolidar”, sublinha.
O problema é que estas questões conduzem a outras, muitas vezes mais graves. Joana Queimadela tem o exemplo do seu filho mais novo, que nos recentes testes intermédios do terceiro período, realizados no início de Maio, “demonstrou uma ansiedade tremenda em realizá-los”. Isto porque há hoje uma exigência em relação aos resultados que é exagerada.
Outro aspecto que o actual programa descura é o trabalho de tornar a escola atractiva. “O próprio professor não tem tempo, porque há um programa para cumprir e não há tempo para tudo o que podia ser feito para cativar o aluno, torná-lo feliz em contexto escolar”, sustenta.
Joana Queimadela aponta ainda mais uma série de situações em que a escola deveria ser repensada no 1º ciclo. Uma delas é que as crianças passam demasiado tempo em contexto de aula. “É complicado para aquelas crianças gostarem da escola quando trabalham mais horas que muitos adultos”, aponta. O número de alunos por turma também é considerado exagerado.
Outro ponto que Joana Queimadela critica no sistema actual é a opção de diversos agrupamentos pelas duas horas de almoço. “Percebo que há dificuldades dos pais para irem buscar as crianças mais cedo, mas é tempo exagerado e que permite tudo, incluindo episódios de violência”, adianta.
Joana Queimadela diz que era importante dar um passo atrás nestas matérias e aliviar o currículo, até porque o ensino obrigatório em Portugal é bastante extenso.

PROFESSORES CONTRA O PROGRAMA ACTUAL

Cristina Duarte é coordenadora do 1º ciclo do Agrupamento de Escolas D. João II e concorda que os programas são “demasiado extensos no que se refere aos conteúdos a leccionar”, acrescentando que este é um sentimento consensual entre os professores.
A docente acrescenta que, na generalidade, “estes programas não são totalmente adequados à faixa etária dos alunos”. E há mesmo conceitos em que “é exigida uma capacidade de abstração que não é consentânea com o estádio de desenvolvimento cognitivo dos alunos”, observa.
No entanto, também vê vantagens neste modelo, que apontam para o desenvolvimento de capacidades transversais e de competências que servem de base às aprendizagens a realizar nos ciclos subsequentes.
A coordenadora do 1º ciclo do Agrupamento D. João II diz que as grandes dificuldades que os docentes sentem são a gestão do tempo, o aprofundamento dos temas e a consolidação das aprendizagens dos alunos. “É necessário tempo para que os alunos se apropriem de um determinado saber para que posteriormente possam fazer uso dele e esta é sem dúvida a principal dificuldade sentida pelos professores”, sustenta. Estes problemas são ainda potenciados por turmas que são demasiado grandes.

ALTERAÇÕES EM CURSO

Cristina Duarte adiantou à Gazeta das Caldas que há alterações prontas a implementar já no próximo ano, mas só para os alunos que iniciam o seu percurso, ou seja, no primeiro ano de cada ciclo, com base no Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular, que está a ser testado nalgumas escolas.
Em resultado de um estudo publicado em 2017 pelo Ministério da Educação sobre o perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória, está em discussão pública o conjunto das Aprendizagens Essenciais para cada ano de escolaridade. “Isto constitui uma alteração significativa em relação ao modelo anterior, tornando o currículo menos prescritivo e mais flexível, sendo dada a possibilidade aos agrupamentos de gerirem uma parte do currículo de acordo com o seu contexto, e de criarem outras oportunidades de aprendizagem aos alunos”, concluiu Cristina Duarte.

“A pressão que as crianças do 1º ciclo sentem está a potenciar elevados níveis de stress e ansiedade”

Turmas mais pequenas poderiam potenciar melhor aprendizagem aos alunos na escola. Fora dela, os pais têm um papel essencial na aprendizagem dos filhos, o que deve ser feito idealmente em situações do dia-a-dia ou de forma lúdica
Turmas mais pequenas poderiam potenciar melhor aprendizagem aos alunos na escola. Fora dela, os pais têm um papel essencial na aprendizagem dos filhos, o que deve ser feito idealmente em situações do dia-a-dia ou de forma lúdica

No ano lectivo passado, o Gabinete de Psicologia da União das Freguesias de Nossa Senhora do Pópulo, Coto e São Gregório dinamizou sessões lúdicas e interactivas para as crianças de 1ºciclo sobre o tema “Como lidar com o stress e os insucessos desde pequeninos”.
Nessas sessões foi questionado às crianças o que as preocupa ou assusta na escola, e muitas das respostas incidiram no insucesso. “Tenho medo de não ser capaz de fazer as tarefas”, “tenho medo de falhar”, “tenho medo de não passar o ano”, “tenho medo de não conseguir e ter más notas”.
No entender de Sara Oliveira, psicóloga daquela união de freguesias, “a pressão que as crianças do 1º ciclo sentem está neste momento a potenciar elevados níveis de stress e ansiedade”. Isto deve-se a diversos factores, que podem passar pelos conteúdos programáticos actuais e pelas exigências para que as crianças cumpram as expectativas que são criadas, tanto pela sociedade, como pela escola, pelos pais ou, inclusive, por elas próprias.
Para a psicóloga, o problema começa pela forma como o programa foi construído, com “informações e matérias densas” que não dão espaço às crianças para as processarem da melhor forma. “Os conteúdos são passados, mas cada vez mais elas não conseguem absorver toda a aprendizagem, o que gera frustração para a criança e para todos os que se preocupam com ela”, considera.
A intensidade dos conteúdos também não permite que sejam trabalhadas e desenvolvidas outras competências nas crianças, essenciais para o seu desenvolvimento pessoal. “Às vezes, é como se construíssemos uma casa pelo telhado, se são passados alguns conteúdos intensos sem a criança ter bases em diferentes domínios e competências e às vezes sem ter maturidade ou autoconhecimento, não é produtivo”, acrescenta.
Sara Oliveira refere que todas as crianças têm o seu ritmo e a sua forma de apreender a informação e que as exigências e estandardização dos conteúdos nem sempre têm em conta estes factores. Existem meninos que se esforçam imenso e conseguem acompanhar as matérias leccionadas e muitos que se sentem frustrados por considerarem não ser capazes e por ser extremamente difícil para estes. E também os que, apesar de terem competências cognitivas, não conseguem traduzir isso no contexto académico, por vezes por se sentirem pressionados pelas matérias e devido a factores emocionais e motivacionais.

A psicóloga alerta que é preciso ter em atenção estes processos, porque a eles podem estar associados problemas como “ansiedade, desmotivação, isolamento, apatia, sintomatologia depressiva, entre outras”. Existem dados estatísticos da Ordem dos Psicólogos que atestam esta realidade e Sara Oliveira realça que isso aumenta a probabilidade destas crianças terem dificuldades em lidar com a ansiedade no ensino secundário e de desenvolver uma depressão ou uma perturbação da ansiedade na idade adulta. Por isso, “importa repensar a forma como ensinamos as nossas crianças na actualidade”, afirma, e dar-lhes voz para que possam expressar o que sentem em cada momento.
A dimensão das turmas também pode ser parte do problema, uma vez que crianças que tiverem receios, inseguranças ou falta de auto-estima, quando inseridas em turmas grandes “terão dificuldades em desenvolver a sua capacidade crítica perante a turma e as personalidades das outras”, adverte. Uma criança com estas características facilmente se exclui, quando se deve sentir envolvida no processo.

PAIS DEVEM SER PONTO DE EQUILÍBRIO

Os pais têm um papel fundamental para que se encontre o equilíbrio entre a aprendizagem e o bem-estar emocional da criança. Parte da função é canalizar esta pressão que existe de forma construtiva. Sara Oliveira defende que se deve privilegiar o diálogo entre a família e a criança. Questões que parecem banais, como “O que fizeste hoje de novo na escola?”, ou “Como te sentiste?”, são úteis. E é essencial “mostrar que o medo e a frustração são emoções que podem aparecer e tudo isto pode e deve ser trabalhado em família”, sustenta a psicóloga.
Sara Oliveira diz que moderar as expectativas também ajuda, pelo que exigir notas elevadas é de evitar. Deve-se, contudo, planear objectivos que ajudem a alimentar a autoconfiança, não esquecendo de comemorar os êxitos com momentos de elogio e carinho. Já o erro não deve ser sobrevalorizado, mas sim relativizado, “transmitindo que errar faz parte do processo de aprendizagem e que ele pode tentar outra vez e melhorar”, diz Sara Oliveira.
Os pais também devem estar presentes no processo educativo e devem articular-se com a escola constantemente. Essa integração pode nem ser através dos trabalhos de casa. Sara Oliveira diz que existem inúmeros momentos em que os pais podem potenciar aprendizagens e competências nas crianças em situações do dia a dia, ou em momentos lúdicos. O jogo dos pares, quebra-cabeças e puzzles são formas de treinar a concentração e a atenção, os jogos do Stop, da sequência de palavras ou da forca, podem desenvolver o léxico. Também se pode desafiar a criança para ser ela a ajudar a ler a lista de compras no supermercado, treinando a leitura. “Vários estudos indicam que a acomodação das informações e aprendizagens, se for feita num período de tempo em que a criança está relaxada, poderá ser bastante eficaz”, sustenta.
Já sentar uma criança a uma secretária após um longo dia de escola pode ter um efeito contrário ao pretendido, embora esse seja um assunto que divide opiniões.
O que Sara Oliveira alerta é que “é importante ter-se a noção que a criança precisa de pausas e de momentos de lazer e abstração para conseguir ser produtiva”. Até porque sem essas pausas torna-se difícil manter a concentração, “o que não é culpa das crianças, é algo que se desenvolve normalmente com a idade”, acrescenta.
De resto, ter outras actividades, como o futebol, a ginástica, a música, ou simplesmente brincar livremente é essencial.
“Actualmente o tempo para aprender por vezes sobrepõe-se ao momento para brincar, quando é essencial compreendermos que ao brincar a criança está efectivamente a aprender”, concluiu.