Comédia de Sofia Bernardo alerta para o preconceito em relação às empregadas domésticas

É noite de festa. Dentro de poucas horas as 12 badaladas assinalam um novo ano e as notícias já dão conta de como é vivido o réveillon noutras partes do mundo. São seis da tarde e Maria ainda vai “fazer umas horas” a casa da Dona Marta. É empregada doméstica.
A intenção é despachar o serviço em pouco tempo para depois ir ter com a amiga com quem combinou comer as passas, mas os planos saem-lhe furados porque essa amiga deixa-a pendurada. Maria acaba por passar a noite em casa da patroa, mas insiste em divertir-se apesar do imprevisto, e até aproveita para reflectir sozinha sobre uma série de coisas.
Ficamos a saber que Maria é de origens humildes. A sua mãe Rosa deixou a vida do campo para ser criada na cidade e durante muitos anos serviu numa casa onde era tratada sem respeito pelos patrões. Sabemos também que Maria não chegou a terminar a licenciatura em Filosofia porque não havia dinheiro para pagar as propinas. E que no meio disto tudo, o seu pai tinha sido o patrão da mãe, que em momento algum teve coragem para assumi-la enquanto filha ou sequer contribuiu para que ela pudesse ter as mesmas oportunidades que os irmãos.
“Há mágoa, mas não há complexo”, ouvimo-la dizer num dos momentos da peça, enquanto também se lembra do último conselho da patroa para resolver todos os seus problemas. “Disse-me que tinha que acreditar na lei do universo para concretizar os meus sonhos”, conta, ironizando logo em seguida: “a Dona Marta diz que tudo o que tem foi graças ao Universo, mas depois vai-se a ver e esta casa recebeu-a de herança, o carro foi-lhe oferecido pelos anos e trabalha na empresa do pai…”.
A comédia de Sofia Bernardo é uma constante reflexão sobre de que forma as origens familiares condicionam o futuro de uma pessoa ou até que ponto o dinheiro pode comprar o respeito. E é também um alerta para o facto de não existirem trabalhos menores.
“Esta história toca todas as mulheres que não tiveram escolha e embora hoje as empregadas domésticas não sejam tratadas com o desprezo de antigamente, a verdade é que ainda conseguimos ignorar uma pessoa que está a fazer limpezas”, disse a actriz à Gazeta das Caldas, acrescentando que este tipo de profissões (como a recolha de lixo ou a limpeza de ruas) são essenciais para que as cidades funcionem diariamente.
“A vida é curta demais para passar os lençóis a ferro” é o título desta peça e foi a frase que serviu de inspiração para Sofia Bernardo escrever o monólogo. “Foram três meses de investigação em que compilei muitas histórias verdadeiras que conhecia e as condensei nas várias personagens do texto”, explicou a autora, que se tem dedicado à comédia para abordar problemas sérios.
Neste espectáculo, por exemplo, Sofia Bernardo também critica os actuais adolescentes, que se desinteressam cada vez mais pelo mundo à sua volta e acham tudo “bué chato”, ou os pais que deixam de viver as suas próprias vidas para se dedicarem exclusivamente aos filhos (fazendo questão de colocar tudo na Internet…). Há ainda espaço para uma referência às pessoas coscuvilheiras – em todos os bairros há pelo menos uma – que o Governo devia aproveitar para os seus serviços secretos.
Sofia Bernardo é caldense mas vive desde pequena em São Martinho do Porto. Concilia o teatro (área onde fez formação superior em Évora) com a actividade de professora no Centro de Educação Especial Rainha D. Leonor. Faz também stand-up comedy. “Deves ter a mania” é a sua última criação e espera-se um novo espectáculo ainda este ano.
“A vida é curta demais para passar os lençóis a ferro” vai agora ser apresentada em Pampilhosa da Serra (24 de Maio) e Taveiro (16 de Junho), depois de já ter passado por locais como Mangualde, Condeixa, Anadia, Tomar e Alcobaça.