José Ricardo Ferreira nasceu na Atouguia da Baleia e foi para França, a salto, em 1963. Passou uma ponte e um penhasco sobre o Rio Sever de gatas e entrou em Paris, 12 dias depois, escondido num camião TIR, junto com mais 96 portugueses. Passou 13 anos em terras gaulesas, antes de regressar à Atouguia.

José Ricardo Ferreira nasceu a 26 de Maio de 1931, embora o seu Bilhete de Identidade tenha a data do registo e não a de nascimento – 25 de Junho do mesmo ano. Nasceu em casa dos pais, na mesma rua onde viria a construir a sua casa, 40 metros acima.
A família era grande, composta por pai, mãe e nove filhos. O atouguiense conta que levavam “uma vida pobre” e que o pai trabalhava muito para sustentar a família.
Os primeiros anos de vida de José Ricardo Ferreira foram passados com os irmãos em brincadeiras. “Fomos sempre muito amigos e uma família muito unida, e ainda somos”, nota.
Aos 13 anos começou a trabalhar “com um cocho de massa à cabeça, a dar serventia nas obras de uma grande vivenda que estava a ser construída na estrada que liga a Atouguia a Peniche”.
O primeiro ordenado foram 15 escudos (0,75 euros) e esse trabalho durou cerca de dois anos. Quando acabou, encontrou emprego nas obras de alcatroamento de uma estrada na zona dos Remédios, em Peniche, perto da Praia do Porto da Areia. “Ia e vinha a pé e trabalhava de sol a sol, demorava 1h30 para chegar e ganhava dez escudos [0,05 euros]”, lembra.
Daí, acabou por ir trabalhar na construção do porto de abrigo de Peniche, onde laborava mais de meia centena de homens. “Eu tinha pouco corpo, então o irmão da minha mulher – que na altura ainda não o era – disse-me para subir logo para cima de um estrado para parecer mais alto e assim conseguir trabalho”.
Esta foi “uma obra complicada, onde trabalhávamos consoante as marés”. Durante três anos foi essa a sua rotina, até entrar para a Câmara de Peniche, também como servente. Tinha 18 anos e passou a ganhar 22 escudos por dia (0,11 euros). “Ia a pé, mas depois comprei uma bicicleta e, mais tarde, um terreno baldio que me custou 900 escudos [4,50 euros], e onde comecei a fazer uma casinha”.
O dinheiro era escasso e, já com 20 anos, José Ricardo Ferreira queria casar-se com a sua paixão, Virgínia de Jesus Ferreira, uma vizinha com quem começara a namorar aos 17 anos. Como na altura tinha pouco dinheiro, decidiu vender a bicicleta que tinha comprado e forrar um quarto que tinha construído no lugar onde mais tarde ergueu a sua casa. “Assim, quando saía da cama não tinha de meter os pés no chão de terra”, contou.
Foi também aos 20 anos que foi chamado para a inspecção na tropa. Nessa altura, não havia água canalizada e, para se lavar, tinha de ir buscar a água à Fonte de N. Senhora. “Lembro-me que antes de irmos à inspecção, íamos tomar banho ao açude onde hoje é a barragem”.
A inspecção foi em Agosto, mas a primeira incorporação era apenas em Janeiro. Corria o ano de 1951 quando um dia lhe apareceu um cunhado de bicicleta a dizer que lhe trazia boas novidades: “veio dizer-me que não ia para a tropa e eu fiquei muito contente”.

A PRIMEIRA TENTATIVA

Mas a vida na Atouguia da Baleia era muito pobre e José Ricardo Ferreira ambicionava mais. Aos 32 anos, casado e já com um filho, continuava a trabalhar na Câmara. “Eu estava escalado para o serviço de alcatroamento da estrada da Atouguia e na noite anterior fui com mais de 17 colegas da Atouguia, de Ferrel e de Peniche para Lisboa num autocarro que parou em Santa Apolónia. Queríamos ir para França”.
Chegados à estação, foi-lhes dito para se dividirem, mas para não se afastarem muito e assim fizeram. Passaram todo o dia na estação e à noite um dos penichenses disse-lhe que o passador – que José Ferreira nunca chegou a conhecer – os havia mandado voltar para as suas terras porque estavam cercados e não poderiam sair do país nessa noite. Apanharam o autocarro de volta e saíram na Seixeira, seguindo a pé durante a noite até à Atouguia para não serem vistos. “Havia aqui uma máfia da PIDE que não queria que abalássemos e que incluía o padre”, conta.

À SEGUNDA FOI DE VEZ

Como a experiência não correu bem, procurou um outro passador e encontrou-o num tio da sua mulher. A 7 de Outubro do mesmo ano avisou apenas a sua esposa que ia para França e saiu, à 1h00 da manhã, direito a Coimbrã a pé, com um colega, chamado José Correia.
José Ricardo Ferreira levava calçados os sapatos do casamento e, pendurado ao ombro, um par de botas que mandara fazer à medida. Além disso, possuía apenas a roupa que tinha na pele e dinheiro: 13.100 escudos (65,34 euros).
Na Coimbrã encontraram-se com mais dois homens e apanharam um táxi até Tornada, onde pararam para colocar combustível. “Depois o táxi não pegava e tivemos de o empurrar”, recorda. Seguiram até Leiria durante a noite e aí pernoitaram, sem comer até às 14h00 do dia seguinte. Aos quatro penichenses juntaram-se mais dois pombalenses.
Às 14h00 apareceu-lhes um táxi que os transportou até uma aldeia perto de Portalegre. O passador disse-lhes então: “escondam-se atrás deste muro que eu já venho buscar-vos”. E assim foi. O passador foi a Portalegre e regressou para os trazer para a cidade, onde pernoitaram. “Era num primeiro andar e quando descemos as escadas de manhã, encontrámos o chefe dos passadores à porta, do lado de dentro. Ele disse: é aqui que vocês têm de pagar e foi aí que larguei 12 contos e 100 escudos [60,35 euros]”.
Daí voltaram para a pequena aldeia onde tinham estado na véspera e onde voltaram a ficar à espera. Os passadores é que sabiam a melhor altura de tentar atravessar a fronteira.
“Nós tínhamos fome e decidimos ver se encontrávamos alguma coisa aberta. Vimos uma taberna onde nos arranjaram um bacalhau com batatas e voltámos para o mesmo local”. À noite apareceu o passador que os levou para um pequeno hotel em Portalegre, onde um Volkswagen Carocha os esperava, para transportar os oito – os seis emigrantes, o motorista e o passador – até perto de Santo António das Areias. “Lembro-me que íamos como o peixe em cabazes e íamos a descer uma encosta íngreme com muitas curvas e eu só pensava que se tivéssemos um acidente ficávamos ali”.

Entrar em Espanha por um penhasco

A certa altura, saíram do carro e seguiram a pé até ao rio Sever, que tinha uma pequena ponte e o passador avisou que só podia passar um de cada vez. “Eu passei de gatas, com cuidado para não cair, porque se caísse dali, já não subia”. Passou a ponte, entrando assim em solo espanhol, e continuou de gatas mais 20 metros, num carreiro à borda do rio. “Passámos umas azenhas e chegamos a uma quinta de gado bravo”. Seguiram pelo lado de fora da rede e chegaram a um arco formado pela vegetação que dava entrada a uma grande gruta para onde entraram e onde se esconderam. “Eu pensava que ali ninguém nos encontraria e perguntava-me quantos centos de homens já ali teriam passado”. Ali puderam beber água, comer um pão e pernoitar.
“Recordo-me perfeitamente do passador espanhol dizer que os portugueses eram uns ladrões e que ele recebia apenas uma pequena parte, era por isso que os portugueses também não eram bem tratados pelos passadores”.
Pelo caminho, o seu amigo Zé Correia rompeu as botas e já tinha os pés em sangue. “Eu quis dar-lhe os meus sapatos, mas eram pequenos. Então calcei as botas, dei os sapatos a um dos rapazes de Pombal e ele deu os sapatos dele ao Zé Correia, porque eram mais largos que os meus”.
Depois de alguns quilómetros em Espanha, esconderam-se debaixo de um alpendre da escola, que ficava ao lado da estação. “Escondam-se e ninguém se mexe, que eu vou buscar os bilhetes”, disse o passador. “O Zé Correia esticou as pernas e o passador voltou atrás para lhe dar cachaporra nas pernas e gritar para ele se encolher”.
Passado um tempo o passador regressa com os bilhetes, agacha-se e diz-lhes qual a carruagem que deviam apanhar. “Não aceitem nada para comer”, disse-lhes, antes de os abandonar.
Foi de comboio que chegaram a Madrid. “Nunca tinha visto uma estação tão grande, lembro-me de atravessar imensas linhas de comboio, para não sairmos pela estação porque tínhamos medo”.
Quando saíram, encontraram o chefe dos passadores, que lhes tinha cobrado os mais de 12 contos em Portalegre. Perguntou-lhes se tinham fome e ofereceu dois caramelos a cada um. “Agora sigam por este passeio abaixo, atrás de mim, mas longe de mim e a falar espanhol”, disse-lhes. Andaram dois quilómetros até um táxi que os levou a uma quinta.
“Aí, nós os seis, juntámo-nos a mais 91 homens portugueses que também queriam passar a fronteira para França”, conta. No dia seguinte foram colocados numa carrinha de caixa aberta com um oleado por cima. “Parecia sardinha enlatada e quem levantasse a cabeça acima da altura do taipal levava cachaporra”, lembra.

A CHEGADA AOS PIRINÉUS

Chegados à zona dos Pirinéus seguiram a pé. Eram uns 100 homens conduzidos por dois passadores, um à frente e outra atrás do grupo. “Atravessámos um rio seco que tinha muitas silvas, um dos passadores disse que estávamos em França e um colega meu gritou que estávamos ricos”.
Durante três horas esperaram numa quinta onde comeram pão com salpicão. Depois chegou um camião TIR para onde os 97 homens entraram. No interior havia dois bidões de 50 litros, para fazerem as necessidades.
“Chegámos a Paris depois de 12 dias em que dormimos em palheiros, sem comida nem água. Deixaram-nos perto de uma fábrica de tijolo em Orly”. Um português ofereceu-se para os levar para o local que José Ferreira tinha escrito num papel: Savigny, onde tinha um cunhado. Mas para isso cada um tinha que pagar um conto de reis (1000 escudos = 5 euros) e só ele é que tinha esse dinheiro consigo. Não foram. Dormiram ali e no dia seguinte viram numa estrada perto imensas pessoas a passar durante toda a manhã. “Esperámos a ver se era alguém conhecido porque a zona onde achávamos que estávamos tinha muita gente daqui, mas nada”. Não conheciam ninguém, então decidiram seguir na mesma direcção e foram dar a um grande mercado com quatro corredores. Combinaram então dividir-se cada um por um corredor e encontrar-se no final do mercado.
“Vi um taxista e mostrei o papel com as direcções, mas não nos entendemos porque eu não falava francês, então fui ter com os meus colegas, triste, a contar o sucedido”. Nessa altura, um senhor bem vestido com uma gabardine que os havia seguido no mercado foi ter com o grupo e perguntou o que se tinha passado. “Contei-lhe a situação e ele disse que nos levava por 200 escudos [1 euro] cada um. Foi logo, nem pensámos duas vezes”.
O homem disse-lhes então para o seguirem e não o perderem de vista, mas para não irem junto dele. “Íamos sujos e a cheirar mal”, lembra. O misterioso homem tirou os bilhetes de comboio e disse-lhes como chegar ao destino.
Em Savigny foi trabalhar no que sabia, como servente de pedreiro. Nos primeiros tempos vivia num abarracado, com telhado em zinco. Dividia o tecto com mais 20 homens. “Aqui em Portugal eu vivia pobre, mas nunca pensei que um emigrante, quando chegava a França vivesse tão mal”, compara.
Aos poucos o seu trabalho foi-se destacando e dois pedreiros franceses que lá trabalhavam requisitaram os seus serviços. “Ganhava mais mil escudos [5 euros] além do ordenado que o patrão me pagava”. Ao fim de oito meses a dupla gaulesa disse-lhe que ia mudar de empresa e que ele ia com eles.

Regresso a casa dez meses depois

Estava há dez meses em França quando ele e os três penichenses que com ele tinham partido, decidiram regressar a Portugal para fazer o passaporte e matar saudades da família.
Quando regressou a terras gaulesas um dos dois pedreiros franceses havia falecido, pelo que não iria para essa nova firma. “Fui ter com um amigo lá e expliquei que estava sem trabalho e que a minha conta na empresa estava fechada e ele arranjou-me trabalho, mas como pedreiro”.
Todos os anos José Ricardo Ferreira vinha a Portugal pelo Natal. Em 1968 nasce o segundo filho do casal. E é nesse ano também que o atouguiense é apanhado pelos acontecimentos que viriam a ser conhecidos como Maio de 68.
Como a maioria dos emigrantes portugueses, José Ricardo Ferreira não era politizado, mas é envolvido numa greve geral. “Lembro-me que ia na rua com a sacola e vejo uma grande multidão que me agarrou e puxou para o meio e ainda andei uns quilómetros a ver as pessoas a arrancar os paralelos das ruas, para os atirar à polícia, mas eu fui-me deixando ficar para trás e acabei por me conseguir afastar”.
Nessa altura dois irmãos que também tinham ido para França ofereceram-lhe trabalho como estucador e assim ocupou mais um mês.
Mais tarde encontrou novamente trabalho na sua área. “Só conheci três patrões em França e nenhum me mandou embora”.
Trabalhava para uma grande firma, com empreitadas por toda a França e Marrocos. Morava perto de Dunkerque, em frente ao canal da Mancha e conta que havia um miradouro “que dava para ver Inglaterra quando se colocava um franco num binóculo”.
Daí seguiu para Nancy. Recebia um subsídio para ficar num hotel, mas preferiu sempre poupar esse dinheiro e dormir em bungalows da empresa. “Pensei em vir buscar a minha mulher e o filho para França, mas mesmo que estivessem lá, só os podia ver de 15 em 15 dias, por causa do trabalho”.
Corria o ano de 1976 e o atouguiense estava a trabalhar em Saint-Malo, a fazer uma grande barragem, quando disse para si mesmo: “vou voltar para Portugal, estou enjoado de estar sozinho e longe dos filhos e da mulher”.
Na Atouguia já tinha uma casa construída e tinha comprado vários terrenos, onde mandara fazer furos de água. “Cheguei e comprei uma camionete para vender os legumes que plantava nos terrenos”.
Mas a sua vida ainda se voltaria a cruzar com a bandeira francesa. É que pouco depois, o filho mais velho foi para França, onde ainda reside. Mas vem à terra todos os anos em Agosto e em Janeiro.