A cutelaria na região nasceu por obra de dois mestres irmãos

0
847
Gazeta das Caldas

12195781_10153376126456185_5463023759661917271_n copy_1 12195946_10153376125861185_6553194693977611035_n copy_1 A origem da industria da cutelaria na região despoletou ao longo de várias décadas uma querela entre a freguesia da Benedita e a vizinha Santa Catarina, concelho de Caldas da Rainha. Mais do que perceber onde surgiram as primeiras cutelarias na região, importa descobrir qual a origem desta arte e o porquê de se ter implantado neste território apenas algumas décadas depois de chegar a Portugal.
Nas suas investigações recentes, o beneditense Fernando Maurício, interessado pelo tema, encontrou ligações entre a freguesia de Nossa Senhora da Encarnação, atual Benedita, e o aparecimento da primeira oficina de cutelarias da região. Uma investigação que recua no tempo até ao século XVIII e onde se destacam duas fig348s copy_1uras centrais na história desta industria na região sul do concelho de Alcobaça: os irmãos Joaquim e António Polycarpo.
Joaquim Policarpo, nascido em 1796, foi mestre responsável por vários dos artesãos, tanto de Benedita como da freguesia de Santa Catarina. Terá sido a partir da sua oficina que se deu a disseminação desta arte na região. Filho de Policarpo António (Polycarpo na grafia da época) e Maria Josefa, moradores de Benedita (designada em documentos da época como paróquia de Nossa Senhora da Encarnação) mas que haveriam de se fixar em Mata de Baixo, no concelho de Rio Maior, Joaquim Policarpo terá partido ainda na adolescência para Lisboa onde, na companhia do irmão, António Policarpo, terá recebido formação na arte da cutelaria.
A cutelaria era, à época, uma arte recente em Portugal: apenas depois do terramoto de 1755, o Marquês de Pombal terá feito chegar do estrangeiro mestres de várias artes para ajudar a reconstruir o comércio do país. Um deles, um francês de nome Charnière, estabeleceu-se em Lisboa na Rua Formosa e ai instruiu vários jovens de todo o país. Apenas dois dos seus aprendizes acabariam por resistir no ofício, sendo dois deles os irmãos António Policarpo e Joaquim Policarpo, segundo nota biográfica de Pereira de Souza, publicada em 1856. Os destinos dos dois irmãos haveriam de ser no entanto bastante distintos.
Joaquim haveria de regressar à sua região natal para aí se fixar. Foi em Mata de Baixo, atual concelho de Rio Maior, que o mestre  terá formado muitos dos futuros artesãos que se disseminaram pela região. Um dos aprendizes seria o seu filho, também de nome Joaquim Policarpo, sobre o qual os registos do arquivo distrital de Santarém dão conta de contratos assinados para cursos de aprendizagem de vários artesãos da região, entre eles António Policarpo, jovem natural da Benedita que a partir de 1859 e durante cinco anos trabalhou com Joaquim Policarpo (filho). “O mestre Joaquim Policarpo é cutileiro, morador em Mata de Baixo, freguesia de Rio Maior” refere o anúncio público da época, acrescentando ainda alguns dos pormenores do contrato de formação. “O aprendiz dará ao mestre cinco anos de trabalho (…) dando o mestre comer, vestir e calçar (…). Durante cinco anos o aprendiz sujeitar-se-á a fazer tudo quanto o mestre lhe mandar fazer e não poderá sair para parte alguma sem licença do mestre”. O contrato envolvia ainda um fiador, Caetano Rebelo, morador em Engenhoca, na freguesia de Benedita. Como este, outros aprendizes passaram por Mata de Baixo e pela formação dos “mestres” Joaquim Policarpo, pai e filho.
Será a partir das figuras de Joaquim Policarpo pai e filho que emergem outros artesãos. Entre eles Manuel Félix, casado com uma das irmãs de Joaquim Policarpo (filho), que terá também ele, sido um dos primeiros cutileiros na região.
Irmão mais velho de Joaquim, António Policarpo haveria de seguir um destino diferente, vivendo grande parte da sua vida em Lisboa onde se estabeleceu.
Apenas com três anos de formação em cutelaria, António Policarpo foi mobilizado para as tropas nacionais que combateram na defesa contra as primeiras invasões francesas em 1807. Acabou depois, como granadeiro, de ser destacado para o combate em França e Espanha.
Apenas em 1824 deixou a vida militar ativa, dedicando-se “exclusivamente à fundação do seu estabelecimento que iniciou em novembro de 1825” segundo Pereira de Sousa, numa nota biográfica de 1856. Seria esta a data da fundação de uma casa de cutelaria que ainda hoje subsiste em Lisboa com o nome do seu fundador: A Casa Policarpo.
A sua vida profissional sofreria no entanto novo revés com o inicio do reino de D. Miguel e o estabelecer do Absolutismo Despótico em Portugal. Liberal, António Policarpo haveria de se refugiar em casa de um vizinho e amigo, um negociante francês de nome Sovinet. Em 1833 António Policarpo seria novamente destacado para as tropas na guerra-civil e serviria até 1840, já depois do final do conflito.
Voltou depois ao seu ofício, tentando reconstruir o seu negócio onde acabaria por empregar 26 trabalhadores. O seu trabalho era reconhecido nacional e internacionalmente. Era a Casa Policarpo quem fornecia a faculdade de medicina do reino bem como “todos os hospitais civis e militares”, bem como a escola médico-cirúrgica de Lisboa.
A excelência dos seus produtos para as áreas de veterinária, cirurgia ou jardinagem, valeu-lhe a medalha de primeira classe na exposição nacional de 1849 e de segunda classe com menção honrosa na exposição universal de Londres em 1851. Recebeu ainda das mãos de D. Pedro V o Grande Colar de Torre e Espada.
Para além dos prémios a reputação de António Policarpo e da sua casa levava grandes nomes da cena cultura até ao seu estabelecimento. Bordalo Pinheiro costumava ir lá “cavaquear” em tertúlias animadas. Em “António Maria”, Bordalo Pinheiro escreveu que “A Cutelaria Polycarpo é uma pequena maravilha, uma oficina modelo, pela novidade, pelo esmero e originalidade dos seus processos de fabrico, pela educação artística do seu pessoal”. Sobre António Policarpo diz, “um simpático e amável velhinho, que ouviu zunir muita bala disparada em favor da liberdade”, numa referência às guerras liberais.
Os seu instrumentos de cirurgia valeram-lhe um considerável reputação, que levou a sua casa a tornar-se um caso de sucesso em Lisboa. No entanto, António Policarpo acabaria por deixar a gestão do seu negócio a um dos seus aprendizes, depois de uma série de problemas de saúde terem levado à morte de dois dos seus três filhos e de três das suas cinco filhas.
Seria Francisco Estêvão da Silva Lisboa a assumir a responsabilidade de gerir a casa depois de António Policarpo deixar o ofício e não mais a propriedade da casa voltaria à família que lhe deu nome.

* Baseado numa investigação de Fernando Maurício