Matos Coelho: um militar de Abril no 25 de Abril de 2021

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Foi há 50 anos que chegou às Caldas para o Regimento de Infantaria 5. Alferes, tenente e capitão, percorreu todos os degraus até major – general, posto que atingiu em 2002

Meio século depois de ter chegado às Caldas para iniciar uma longa e rica carreira militar, que teve como ponto central a participação no arranque do Regimento de Infantaria 5 (RI5) sobre Lisboa no 16 de Março de 1974, o major-general Adelino Matos Coelho recorda, à Gazeta, alguns dos momentos marcantes que viveu num período histórico.
Nascido em 31 de outubro de 1946 em Aveiro, frequentou a Academia Militar, onde se formou em 1970, tendo escolhido a arma da Infantaria para seguir a carreira. A razão da sua opção pela vida militar está no pai, que era militar. “Em criança, vivi sempre junto a quartéis, onde brinquei muitas vezes. Aos 18 anos, a escolha desta carreira surgiu de uma forma natural e com vários aliciantes. Nessa idade, há uma mistura de gosto pela aventura e o desejo de poderprestar serviços em apoio à comunidade a que pertencemos e poder fazê-lo em diferentes geografias. Naturalmente, também era um projeto de vida”, recorda.
Adelino Matos Coelho, que foi alferes, tenente e capitão, tinha sido colocado no RI5 nas Caldas da Rainha em 1970, no início da sua longa carreira militar em que percorreu todos os degraus até major-general, posto que atingiu em 2002.
“Prestei serviço ao longo de 41 anos, como oficial do quadro permanente do Exército. Além de funções técnicas e de estado-maior que exerci no Exército, no EMGFA e no Ministério da Defesa Nacional, desempenhei os cargos de comandante de companhia, de batalhão, segundo comandante e comandante de regimento. Como oficial general, comandei a Zona Militar dos Açores, dirigi a Direção de Justiça e Disciplina do Exército, fui Inspetor-Adjunto na Inspeção-Geral do Exercito e dirigi a Direção de História e Cultura Militar do Exército. A minha participação no Movimento dos Capitães é igual à de centenas de camaradas meus e o envolvimento no 16 de março é um episódio dessa participação”, refere
Nas Caldas, além de oficial no RI5, simultaneamente, como outros militares do quadro, também dava aulas nos cursos noturnos na Escola Industrial e Comercial.Sobre este período, faz a seguinte análise. “As reformas da Educação, em janeiro de 1970, criaram nas escolas do ensino secundário necessidades de docentes. A minha formação na Academia Militar satisfazia aos critérios exigidos para que, sem prejuízo para as minhas atividades profissionais, o pudesse fazer”.
A partir do ano letivo 1970/71, deu aulas em horário noturno na Escola Industrial e Comercial de Caldas, tendo acumulado o mesmo tipo de atividades, em 1973/74, no Externato Ramalho Ortigão. “Os alunos tinham diferentes idades, alguns mais velhos do que eu, na generalidade, trabalhadores em diferentes setores (funcionários públicos, empregados comerciais, fabris ou agrícolas). Foi o contacto com uma realidade que, até à data, eu não tinha. Aquelas pessoas que desejavam aprender mais, faziam o sacrifício de ir às aulas, em horário pós-laboral (de segunda a sexta, até às 23h00), com a esperança de um futuro melhor”, relembra.
Não admira assim que, em resposta a um questionário do jornalista Adelino Gomes, que também passou pelo RI5 como instruendo antes do 25 de Abril, tenha respondido que sonhava enquanto militar, cidadão e indivíduo no 25 de Abril pelo “fim da guerra, pelo fim da ditadura e pela abertura de Portugal ao resto do mundo e o seu consequente desenvolvimento”.
Sobre a sua vida nas Caldas e a passagem pelo RI5, recorda a chegada, no início de outubro de 1970, “ao Regimento de Infantaria nº 5, como então era designado o Quartel em Caldas da Rainha”, que foi a primeira unidade de colocação em guarnição militar, com mais nove alferes do mesmo curso: Bettencourt Coelho, David Pereira, Gomes Mendes, Guint Barbosa, Lacerda Ramalho, Moreira dos Santos, Rocha Neves, Santos Lopes e Vaz Pombal.
“Era um regimento com um efetivo de mais de um milhar de homens (oficiais, sargentos e praças), onde eram ministrados, anualmente e em quatro turnos trimestrais, cursos intensivos do 1.º ciclo de formação de sargentos milicianos, a maioria dos quais deveria integrar companhias e batalhões destinados ao, então designado, Ultramar”, explica.
Na circunstância, a experiência do contacto com novas pessoas era enriquecedora, mas contrastava com a responsabilidade e o ritmo da preparação militar “em série” – entre outubro de 1970 e março de 1974 (três anos e meio), viu passar pelo RI5 mais de 10 mil portugueses (soldados-instruendos), em catorze turnos de instrução.
Para um oficial de carreira, como Matos Coelho, a passagem pelo quartel das Caldas representava algo: “Não me canso de dizer que, no início de carreira profissional tive sorte em ser colocado no RI5, O ambiente na Unidade era bom, e os jovens alferes iniciavam a sua experiência na organização e na hierarquia, dois pilares da Instituição Militar, em contacto com novos métodos da instrução militar, dando os primeiros passos nos domínios dos circuitos internos de televisão e da utilização de salas didáticas para a instrução de tiro.Os recursos humanos e materiais combinavam o equilíbrio entre missões de instrução para a campanha e a vida de um quartel em tempo de paz, inserido numa cidade socialmente muito ativa. No essencial, um militar em início de carreira tinha aqui a possibilidade de contactar com um leque muito abrangente das especificidades da vida militar”.
Residiu nas Caldas pouco mais de dez anos. A integração na vida citadina “processou-se com facilidade, consolidando relações e amizades pessoais” das quais ainda hoje guarda “muito boas recordações”. “A minha perceção é de que esta experiência não foi diferente da dos outros oficiais, tanto dos que ainda aqui residem, como dos que foram para outras localidades”, nota.
Quando volta à cidade tem uma “sensação agradável, de paz e serenidade”. “Nunca estive colocado na Escola de Sargentos do Exército. No entanto é-me sempre muito grato voltar às instalações do meu ex-RI5 onde, naturalmente, gosto de reavivar a memória ou de rever ‘in loco’ episódios e acontecimentos de há meio século”, justifica.
Teve uma carreira militar bem preenchida, a que se junta a sua particular apetência pela história militar, pelo que não admira que tenha sido o principal responsável pela Direção de História e Cultura Militar do Exército sendo ainda hoje investigador convidado no Grupo de Investigação de História Militar, do Centro de História da Universidade de Lisboa, para além de ser diretor editorial da Revista Militar, e ter sido vice-presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos. ■

 

Entre o 16 de Março e o 25 de Abril

Da falta de reflexão sobre a participação na guerra aos momentos que antecederam o fim do regime

A carreira nas Forças Armadas permite experiências muito diferentes de outras profissões. Apesar da grande probabilidade, antes do 25 de Abril, de poder ir à guerra, esse cenário não lhe foi “indiferente”, assume Matos Coelho. “Aos 18 anos não se morre, e as razões da guerra eram algo, sobre o que ainda não tinha feito uma reflexão mais profunda”, reconhece.
Contudo, recorda-se na Academia Militar dos momentos “aliciantes da convivência e camaradagem, da aprendizagem da organização para campanha, da utilização dos armamentos e da prática das táticas militares.” Em contrapartida também se recorda “da experiência da participação no apoio coletivo e solidário prestado à população de Alhandra, nomeadamente em trabalhos de desobstrução e limpeza de habitações e vias de comunicação, em consequência das chuvas e enxurradas que ocorreram naquela região, na noite de 25/26 de novembro de 1967, provocando centenas de vítimas mortais e muitos estragos”.
Sobre a inevitabilidade do 25 de Abril e sobre a tentativa do 16 de Março, em que esteve fortemente envolvido, recorda: “Não me canso de sublinhar, para que não haja dúvidas, que a maioria dos militares do RI5, na noite de 16 de Março, estava convicta de que participava numa operação do Movimento dos Capitães, com os mesmos objetivos dos que acabaram por sair das suas unidades em 25 de Abril. Ambos os acontecimentos tiveram como intervenientes oficiais do Movimento dos Capitães e até Otelo esteve envolvido em ambos”, frisa.
A diferença “é que o primeiro foi um movimento derrotado e o segundo foi um movimento vitorioso e, se a vitória é consensual e não levanta questões, a derrota obriga a uma análise detalhada para se perceber o como e o porquê dos factos. Por estranho que pareça, só vários anos depois, alguns factos se tornaram conhecidos e a situação foi ficando mais clara”, sublinha o major.
Os riscos que correu riscos mostraram-se elevados, dado que outras unidades não estavam preparadas para sair. Contudo também sabe que “numa missão militar, a vida das pessoas está sempre em risco”. E, por isso, nem tudo acabaria por correr de feição.
“Na operação de 16 de março de 1974, os riscos potenciaram-se porque, confesso, não foi feita uma avaliação prévia da situação. A preparação da Companhia de Caçadores e a confiança que havia nos militares que participavam na coluna eram sinais inequívocos de coesão, aliada à segurança de transportarem grande quantidade de munições, incluindo granadas de mão. Felizmente, nessa madrugada não ocorreram incidentes, apesar de, já no regresso às Caldas e ainda na autoestrada ter havido uma tentativa de intercessão por uma secção da Guarda Republicana, comandada por um tenente. Nesta circunstância, a razão do potencial de combate da companhia do RI5 (200 militares) sobre a secção da GNR (não mais do que uma dezena homens) solucionou uma questão que, nem se chegou a materializar”, garante.
Durante o cerco ao Regimento, na tarde do dia 16, foram estabelecidos procedimentos de segurança e dadas instruções rigorosas às sentinelas para não dispararem as armas, sem ordem. “Na prisão, fui incluído no grupo de oficiais que ficaram presos no Regimento de Artilharia n.º1, em Lisboa, mais tarde designado de Regimento de Artilharia de Lisboa (RALIS). Nos 40 dias de prisão, a guarda aos presos, instalados no edifício da enfermaria regimental, era da responsabilidade da Polícia do Exército”.
À pergunta se a suaparticipação no 16 de Março e, simultaneamente no 25 de Abril, apesar de nesse momento estar preso no Regimento de Artilharia 1, foi o zénite da sua vida, responde: “Esta pergunta faz-me sorrir, porque não lhe sei responder no domínio da curva geométrica que me propõe. Não tenho dúvidas de que pertencer ao Movimento dos Capitães foi um tempo muito marcante de conspiração e entusiasmo A participação no 16 de março de 1974, enquanto movimento falhado, foi uma enorme aprendizagem sobre oportunismo e ingenuidade e, a vivência no MFA convocou-me para o exercício da democracia. Em 1975, nos meses de setembro a novembro, ainda comandei uma Companhia de Caçadores, no quadro do processo de descolonização de Angola, onde vivi aspetos muito sensíveis das vésperas da independência – um mês em Cabinda e outro em Luanda”, atesta o reputado militar.
Agora, reformado, mantém-se “disponível e ativo”. “Integro o Grupo de Reflexão Estratégica Independente, um grupo de oficiais generais dos três ramos das Forças Armadas que realizam estudos de caráter estratégico, económico e social, sobre Portugal e a sociedade portuguesa, numa perspetiva do seu desenvolvimento, sobre a sua defesa e segurança e sobre os valores da cidadania, faço parte da direção da Revista Militar, sendo coordenador da atividade editorial, e sou investigador colaborador no Centro de História da Universidade de Lisboa”, exemplifica.

Uma história por contar
Nesta conversa, Adelino Matos Coelho recorda uma história curiosa que nunca contara sobre o 16 de Março de 1974.
“No final da madrugada, quando a coluna do RI5 entrou na autoestrada, no sentido Vila Franca de Xira – Lisboa (extensão de 25 km), o Capitão Piedade Faria, comandante da Companhia de Caçadores do Regimento e que seguia na última viatura, deu ordem para que as viaturas criassem distâncias entre si, numa formação móvel em xadrez. Desta forma, reforçavam-se as condições de segurança da tropa e o controlo do itinerário. Eu seguia na penúltima viatura e reparei que atrás da coluna se formara uma extensa fila de carros, com as luzes acesas, que se dirigiam à capital. Num ápice, circulando na berma da autoestrada pela direita, um táxi aproximou-se da coluna e o seu condutor exaltado, gritou: “Oh! Senhores! Por favor, parem com o exercício, olhem a fila que vem atrás de vós e deixem-me passar que vou com clientes para o aeroporto”. O taxista ficou estarrecido quando ouviu alguém da coluna dizer: ”Oh! Senhor fique para trás, isto é uma revolução!”

E o 25 de Abril
Sobre a participação no Movimento das Forças Armadas e adesão aos princípios, Adelino Matos Coelho garante “nunca” ter tido “quaisquer dúvidas” e mantém “as mesmas certezas”. “E o tempo apenas tem feito manter a convicção de que continua a ser necessário lutar por tudo o que ainda está por realizar”, observa.
“Os anos de 1970, sobretudo a partir do 25 de Abril, como sabemos, foram uma década de grandes paixões. Como em todas as épocas de rutura, houve convicções e dúvidas, certezas e receios, racionalidade e sonho. Com frequência, disse-se ‘sempre’ e ‘nunca’. Como, em regra, acontece nestas situações, houve momentos de grande entusiasmo e outros de algum desalento”, concelui ■

Oficiais do 16 Março de 1974, no regresso ao RI 5, após o 25 de Abril

 

Em 1972, o tenente Matos Coelho era o porta-bandeira do Regimento de Infantaria nº 5