Criação – apropriação – circulação – fruição

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Devia ser claro mas não é. É a primeira questão. O que se cria é uma singularidade, um corpo imprevisto — nem tudo é criação, nos gestos diários e nos planificados, improvisemos ou não pequenos fazeres no meio de rotinas, realizemos actos espontâneos e aconteça que acasos nos coloquem diante do inesperado. Isso pode ser um começo de, mas não é criação. Há em tudo dimensões criativas, mas a obra supõe uma não existência anterior (mesmo que sob influência ou alinhamento estilístico de objectos e escolas anteriores) e ao mesmo tempo possuir uma capacidade de contaminar quem vê/lê/ouve/ frui de uma vivência que lhe restitui a percepção subjectiva de outra humanidade possível, de uma sociedade em que a circulação do belo fosse um lugar de liberdade em expansão e nessa medida uma espécie de outro pulsar do real — isso seria o presente da fruição, instante, momento ou duração, memória, domínio do tempo.
O objecto estético — possui uma vida própria inesperada transmissível pela sua intensidade e singularidade semantica/formal e converte-se em outro modo de energia no fruidor — vive no instante pressentido do belo, a sua micro-realidade. E o belo é crítico e possui potencialidade cognitiva, mesmo que essas dimensões não sejam nem explícitas nem programa (os modos do belo são infinitos, os trabalhos da forma incessantes) já que mesmo a obra que busca a proporção harmónica segundo o cânone antigo instala uma dimensão utópica logo crítica do real por desacordo com este — para mais, quando as estátuas antigas, por exemplo, por obra do tempo, introduzem “algo perdido” ( literalmente um braço), uma espécie de nostalgia que se converte em pertença futura, forma de o desejo reencontrar “a aura do algo perdido” no que no impacto da redescoberta se converte em devir, energia contaminada pela possibilidade da “(im)perfeição” (o cânone perdeu os três definitivamente e é sem medida prévia) num mundo deformado pela imperfeição como possibilidade da forma.
Qualquer objecto — pintura, instalação, um corpo a corpo teatral — é imediatamente apropriado por todas as formas de mediação que sobre ele estão montadas —, a mediação é o big-brother que conforma a obra e o sujeito que nela vive numa outra coisa que lhe permite transitar, uma espécie de BI da obra, de carta de circulação da obra, de classificacação e estatuto da obra. Esse trânsito do que sendo criado é criação é um modo da sua afirmação que a nega porque lhe altera valores próprios e reduz a objecto com direito de circulação nesse sub sistema designado criativo no interior do grande sistema de troca. Uma obra pode estar uma eternidade no escuro, é no momento em que luz na luz que a escolhe e visibiliza, virtualiza, que ela passa a existir, é o seu único modo de parto. O outro será subterrâneo, e como diz o Senhor Onde, personagem de Vinaver, tem o seu papel no circuito das galerias, isto é, no labirinto das toupeiras. Os cegos vêm melhor por aqui.

Fernando Mora Ramos
fernando.mora.ramos@gmail.com