Assembleia Municipal de Óbidos sob o signo do Pingo Doce

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O processo do Pingo Doce dominou a reunião, com deputados a socorrerem-se de apresentações para mostrar o seu inconformismo face à decisão do tribunal

Os deputados do PSD discordam da sentença do Supremo Tribunal de Justiça, que condena a Câmara de Óbidos ao pagamento de perto de 800 mil euros ao proprietário de um terreno no caso que ficou conhecido como do Pingo Doce. E fizeram questão de o mostrar na Assembleia Municipal de 28 de Fevereiro. A oposição mostrou-se surpreendida com a quantidade de intervenções sobre o assunto e disse que a Assembleia mais parecia um tribunal.
O presidente da Câmara, Humberto Marques, não se conforma com o que diz ser uma “injustiça” e informou que irá recorrer para o Tribunal Constitucional.

Um acordão do Supremo Tribunal de Justiça condena a autarquia de Óbidos a pagar perto de 800 mil euros aos antigos proprietários de um terreno que o município comprou e depois vendeu, por um valor muito superior, para a construção de uma superfície comercial. Em causa está a aquisição de um terreno, em 2004, pelo anterior executivo, liderado por Telmo Faria, cujo proprietário veio mais tarde a declarar-se “lesado” pela câmara. O terreno foi adquirido em 2004 por 229 mil euros e no ano seguinte vendido pela câmara em hasta pública por 1,2 milhões de euros ao Pingo Doce.
Os deputados do PSD na Assembleia Municipal aproveitaram a última reunião para mostrarem o seu descontentamento com a decisão judicial, que consideram injusta para a autarquia.
Os deputados social-democratas socorreram-se de videoprojecções para mostrar as actas e outros documentos para justificar as suas motivações. Defenderam que em lado algum está escrito que no local teria que ser construído um equipamento público, referindo-se apenas à instalação de equipamentos no local. Realçaram ainda que a decisão da compra do terreno foi tomada por unanimidade dos membros na Câmara, assim como depois a sua venda em hasta publica, e queixaram-se do “ruído” que este assunto tem provocado na opinião pública.
O PSD mostrou também o seu descontentamento com o facto dos queixosos terem accionado a caução que arrestou carros de apoio de abastecimento de água e saneamento, transportes das crianças e idosos, maquinaria pesada e o jipe da Protecção Civil. “Como obidense fico indignada com esta tentativa de penhora de bens essenciais ao bom serviço público prestado à população”, disse a deputada Olga Prada, questionando se não haveria outras opções possíveis e mostrando as suas dúvidas sobre a “verdadeira motivação em que assenta este processo”.
Também o presidente da Junta de freguesia do Vau, Frederico Lopes, questionou a motivação do tribunal ao considerar os testemunhos de José Machado e Francisco Braz Teixeira (candidatos à Câmara pelo PS e CDS-PP, respectivamente), “como fundamentais para este entendimento”. O jovem autarca mostrou ainda a sua preocupação com o valor que a Câmara tem a pagar pois os quase 800 mil euros é praticamente o mesmo que a Junta do Vau, a que preside, tem como orçamento durante 13 anos.
O seu homólogo do Olho Marinho, Helder Mesquita, considera que a Câmara fez um bom negócio e defendeu que o caso deve seguir para outras instâncias pois entende que a Câmara não deve pagar. Na sua opinião, o resultado do negócio dos terrenos teve um retorno positivo para as populações.
Já o deputado do PSD, João Carlos Costa, optou por se dirigir à Gazeta das Caldas (jornal onde veio noticiada a decisão do tribunal) a pedir para que fizesse uma “investigação séria e pudesse esclarecer as pessoas sobre o que, de facto aconteceu”. Disse ainda que considera “um pouco triste” que na edição seguinte à notícia, na rubrica Praça Pública, a pergunta que é feita (O que acha da Câmara de Óbidos ter sido condenada a pagar 800 mil euros no chamado caso Pingo Doce?) “faz com que as pessoas, obviamente, respondam a mesma coisa”.
O deputado municipal, que também trabalha numa rádio e tem um contrato de prestação de serviços para uma empresa da Câmara de Óbidos (ver caixa), teceu elogios à Gazeta das Caldas, com quem diz colaborar “inúmeras vezes”, e insistiu numa investigação do nosso jornal, sem contudo adiantar quaisquer elementos sobre o assunto.

Discussão fora de tempo

O deputado do BE, Fábio Capinha, falou sobre o artigo de opinião publicado por Telmo Faria na Gazeta das Caldas, intitulado “Pingo Doce – A verdade que nunca ninguém quis contar”, para dizer que foi o ex-presidente a pessoa que colocou o “município nesta difícil situação”. O deputado bloquista referiu que os factos provados desmentem a teoria apresentada por Telmo Faria, lembrando que a matéria de facto nunca foi alterada nas várias instâncias.
Fábio Capinha quis saber quanto dinheiro o município gastou com advogados e custas processuais e se a Câmara já iniciou diligências para apurar eventuais responsabilidades pessoais assacáveis ao ex-presidente da Câmara, mas não obteve resposta.
A deputada do PCP, Silvia Correia, mostrou-se surpreendida com a quantidade de intervenções sobre o assunto e disse que a Assembleia mais parecia um tribunal. Irónica, acrescentou que “foi uma pena” o presidente da Câmara da altura e a sociedade de advogados não terem pedido “pareceres jurídicos” a vários elementos sociais-democratas da Assembleia Municipal. Por outro lado, considera que neste momento, tendo sido proferida uma sentença condenatória, “já não vale a pena estar a discutir o que quer que seja”.

“Triste e patético”, diz o PS

A deputada do PS, Cristina Rodrigues, fez um resumo do processo e lembrou que os proprietários do terreno, perante a transação, que foi largamente lucrativa para a Câmara, “estavam dispostos a aceitar um suplemento de valor muito menor, por o terreno ter sido vendido pelo município, com grande mais-valia, para negócio privado”. No entanto, tal não foi considerado pela autarquia.
Agora o município foi condenado, o que vai onerar significativamente o orçamento municipal e “provavelmente determinar a contração de empréstimo bancário que permita fazer face às responsabilidades perante os vendedores do terreno, depois desta longa batalha judicial”. E mesmo que haja acordo para o pagamento através da entrega de património, também isso vai onerar as contas municipais porque a Câmara perderá activos.
Os socialistas lamentam a situação, mas respeitam a decisão judicial final. “Naturalmente não alimentaremos polémicas, nem conversas de corredor, nem comentários sobre a bondade e justeza da decisão judicial, nem nesta sede, nem em qualquer outra”, disse Cristina Rodrigues, considerando “triste e patético” o que se assistiu na Assembleia. A deputada lembrou que o Estado de Direito funda-se na separação de poderes e na independência dos tribunais.
“O poder judicial julgou, está julgado. Esgotaram-se as possibilidades de recurso”, disse a deputada, adiantando que não cabe à Assembleia, enquanto órgão autárquico, tecer comentários ou esgrimir argumentos sobre algo que está encerrado à luz da lei e da justiça.

“Sentença injusta”, diz Humberto Marques

O presidente da Câmara, Humberto Marques, considera que esta sentença é “injusta” e garantiu que a autarquia irá continuar a recorrer, agora para o Tribunal Constitucional. “Vou até ao fim, com o prejuízo que isso na imagem do actual presidente de Câmara, mas na defesa do interesse público”, disse.
O autarca disse compreender a revolta dos deputados da bancada do PSD e criticou a posição da oposição. Dirigindo-se directamente ao PS, Humberto Marques, lembrou que os seus representantes também têm responsabilidades nesta matéria pois votaram ao lado da Câmara.
Humberto Marques negou que tenha havido uma proposta de acordo com os proprietários e acusou o PS de conhecer mais pormenores do que o próprio executivo. “O engenheiro Virella nunca veio até nós falar sobre essa matéria e vocês [PS] insistem na questão de que é um equipamento publico, quando não leem isso na acta nem sequer na escritura”, disse.
O autarca referiu ainda que os advogados consideram que “há matéria do Constitucional para recorrer, vamos fazê-lo e recorremos a todas as instancias que forem necessárias para tentar repor o que achamos que é da mais elementar justiça”, disse, lamentando não poder contar com o apoio da oposição.
Nesta reunião, os membros da Assembleia viabilizaram as decisões da Câmara em não aceitar a transferência de competências nos domínios da educação, cultura e saúde, bem como da protecção e saúde animal.