As marchas são a essência do Carnaval da Nazaré

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Notícias das Caldas
Guilherme Azevedo (músico), João Veríssimo (letrista) e Cristiano Vagos (autor do blogue Carnaval da Nazaré). Os três amigos reunidos no estúdio de Guilherme Azevedo, onde se gravam marchas da Nazaré. |Beatriz Raposo

São cerca de 80 marchas por ano. Cada grupo que desfila nos corsos tem uma, assim como cada sala de baile. O mesmo acontece com os bares, restaurantes e pastelarias da Nazaré, que vêem nas marchas uma forma de brincar ao Carnaval e promover o seu próprio estabelecimento.
As letras são escritas exactamente com o sotaque nazareno e muitas delas incluem expressões típicas da sua gente. As marchas são a música oficial do Carnaval da Nazaré, representam a identidade desta vila piscatória e contribuem para que não haja festa como esta em mais nenhuma outra parte do mundo.

Dizem que o Carnaval são três dias, mas na Nazaré o entrudo é tema de conversa todo o ano. Assim que terminam as doze badaladas que marcam o início do ano novo, o povo nazareno já só pensa no Carnaval. Logo à meia noite do dia 31 de Dezembro são anunciados os reis de Carnaval e a Rádio Nazaré transmite a primeira marcha desse ano, em 2017 designada “É Carnaval… Tó’ c’andar!”. Deste dia até ao Carnaval são lançadas marchas todas as semanas, divulgadas não só na rádio (que tem nesta altura mais audiência e publicidade que no resto do ano), mas também no Blog Carnaval da Nazaré.
João Veríssimo, 51 anos, já escreveu mais de 140 marchas. Encontramo-lo no GA Studio, o pequeno estúdio de Guilherme Azevedo, que em 2012 produziu a primeira marcha e de momento está ocupado a gravar mais uma. Falará connosco mais tarde.
Entretanto, João Veríssimo conta-nos que as marchas surgiram por volta de 1970, pelas mãos de Edmundo Maurício. “Ele teve a ideia de lançar a marcha geral, que é como um hino do Carnaval da Nazaré. A primeira que fez chamava-se “É entrudo, encosta tudo” e serviu essencialmente para unir o Carnaval nazareno”, conta, salientando que em todos os anos é feita uma marcha geral. Esta deve incluir obrigatoriamente o tema desse ano que é sempre uma expressão típica nazarena. “Agarrá boça” é o mote para 2017 e que serviu de inspiração para António Lopes escrever a letra. Esta expressão tem um significado especial para os pescadores nazarenos que exclamavam uns aos outros “agarra a boça (do barco)” quando viam que a embarcação ia encalhar. No seu uso mais quotidiano quer dizer “podes esperar sentado”.
João Veríssimo é autor de cinco marchas gerais. Actualmente é a Câmara da Nazaré que convida os letristas para fazerem esta marcha, mas antigamente estes concorriam a concursos. João Veríssimo foi o vencedor por três anos consecutivos, de 1996 a 1998, e em 2015 e 2016 participou na elaboração da marcha geral a convite da autarquia. O letrista – que também já foi Rei de Carnaval e este ano será o apresentador dos desfiles – explica que, além da marcha geral, há mais três tipos de marchas. “Temos as marchas sérias que transmitem o amor e a dedicação ao Carnaval e à Nazaré, as marchas ‘a brincar’ – este ano goza-se muito com a estátua do veado – e a marcha ‘à troncagem’ que é o estilo mais antigo e pode surgir a partir de qualquer instrumento”, diz João Veríssimo.
E se antigamente eram as salas de baile (Casino Salão de Festas, Mar Alto, Pederneira e Planato são as principais) e os grupos que desfilavam que adoptavam marchas, hoje em dia qualquer grupo de amigos pode fazer uma. O Carnaval da Nazaré é conhecido por não ter regras e, quanto às marchas, aplica-se o mesmo. Cada vez mais bares, pastelarias, cafés e restaurantes da vila têm uma marcha: é a sua forma de participar na festa e, ao mesmo tempo, promover o seu estabelecimento.

ESCREVE-SE COMO SE FALA

É obrigatório ser-se nazareno para escrever uma marcha? João Veríssimo diz que não e revela até que já existem pessoas de fora (“chamamos-lhes os palecos”) que frequentam o Carnaval da Nazaré há tantos anos que ganharam o gosto pelas marchas e arriscam-se a fazer uma. Mas a tarefa não é fácil, principalmente porque as letras são escritas com o sotaque nazareno. É preciso conhecer bem a linguagem da terra, assim como os dizeres típicos da sua gente.
João Veríssimo, por exemplo, conta que aponta expressões que vai ouvindo na rua, quando se cruza com pessoas mais velhas. Veja-se a sua riqueza e variedade que até já existe um dicionário Nazareno – Português.
Para o letrista, há também que fazer referência ao grande mestre das marchas da Nazaré. “Porfírio Laborinho tem um dom, foi ele quem fez as melhores marchas de Carnaval, como ‘É de Seda’ ou ‘Mil Carnavais’, que são músicas que ainda hoje se ouvem e toda a gente conhece”, diz João Veríssimo, realçando outros importantes letristas: António Lopes, Ricardo Menezes, José Luís Faísca, José Maria Carepa e Ana Maria Mendes.
Excepto quando venceu os concursos das marchas gerais, João Veríssimo nunca ganhou um tostão com as letras que escreveu. “Escrevo-as por carolice, porque gosto mesmo do Carnaval e o vivo intensamente”.

HÁ MARCHAS QUE JÁ TÊM VIDEOCLIP

Ao contrário dos letristas, os músicos são pagos (tal como as costureiras que se encarregam de elaborar os fatos para os desfiles). Guilherme Azevedo é um deles, assim como Nuno Abelha, Mário João Estrelinha e Rui Talhadas. “Somos pagos, mas o que ganhamos serve praticamente para suportar os custos que temos”, diz o jovem de 20 anos, que entretanto já terminou de gravar a marcha.
Guilherme começou a dedicar-se às marchas em 2012, quando fez a primeira música para o Licóces, um grupo de amigos do qual fazia parte. Há cinco anos não tinha um estúdio como o de hoje: “gravava as marchas por brincadeira numa cabine que tinha ao pé do quarto e com um computador pequenino”, recorda.
O vencedor do programa “Uma Canção Para Ti” (2009) e ex-concorrente do The Voice Portugal já fez perto de 66 marchas, só este ano 23. Em 2014 foi o autor da “Primeira” (a tal que é lançada pela Rádio Nazaré nos primeiros segundos do dia 1 de Janeiro). “Foi a partir daí que mais grupos vieram ter comigo”, revela, acrescentando que para o Carnaval deste ano começou a gravar marchas no dia de 15 de Dezembro, com mais de três meses de antecedência.
Embora as marchas não obedeçam a regras, na opinião de Guilherme Azevedo estas devem incluir “a tarola, o bombo e o compasso binário”. Só assim se preserva a sua essência nazarena. Depois também há quem faça marchas a partir de outras músicas que já existem, apenas lhes colocam outra voz. “Mas há que valorizar sempre mais aquelas que são criadas de raiz”, defendeu o jovem cantor.
Actualmente há marchas que já são acompanhadas de videoclipes. É o resultado da evolução dos tempos e das tecnologias. Por isso é cada vez mais comum encontrar, entre Janeiro e Fevereiro, grupos de jovens disfarçados – ou “ensaiados” à boa moda da língua nazarena – pelas ruas da vila com uma câmara atrás.
Ainda que os desfiles se realizem durante o dia (excepto o de amanhã, sábado, que é nocturno), o Carnaval da Nazaré vive-se à noite. Depois de uma ronda pelos bares, as pessoas seguem para as salas de baile onde há bandas a cantar ao vivo as e a festa se prolonga até de manhã. Antigamente os bailes começavam por volta das 22h00 e muitos eram os que reservavam lugar colocando aventais nas cadeiras. Hoje só lá para as duas da manhã.

“O CARNAVAL DA NAZARÉ NÃO SE EXPLICA, SENTE-SE”

O arranque oficial do Carnaval da Nazaré é dado no dia 3 de Fevereiro com a Festa de São Brás, numa romaria de milhares de pessoas até à capela de São Bartolomeu. Dança-se, bebe-se e assam-se carnes e chouriços. Já os nazarenos vão mascarados. Seguem-se uma série de bailes de máscaras e, no fim-de-semana antes do Carnaval realiza-se o Sábado Magro, um desfile onde participam os grupos Bicicletas, Sakanagem, Trotinetas, Tenantas e Alberqueras. Hoje, sexta-feira, há o corso das crianças e amanhã o desfile nocturno, uma novidade que surgiu há dois anos.
No domingo e terça-feira saem à rua mais de 20 grupos nos dois principais momentos do Carnaval nazareno. Esperam-se entre 80 a 90 mil pessoas, tal como nos últimos anos.
Entre os foliões encontram-se também as bandas infernais, grupos de pessoas que se juntam ao desfile apenas para fazer barulho. Diz-se que estão a “anunciar o Carnaval”.
Todos estes momentos “não se explicam, sentem-se”, afirma João Veríssimo, que diz convicto que o Carnaval da Nazaré é o mais espontâneo do país. “Nós temos músicas só nossas e dançamos de maneira diferente. O Carnaval sai-nos da alma. É a festa popular mais apreciada pelos nazarenos que é transmitida de geração em geração e que por isso criou raízes muito fortes”, diz o letrista, realçando que não há nazareno que não tenha em casa um baú só com roupa para o Carnaval. E atenção: aqui pouco importa se as pessoas vão bem ou mal disfarçadas. Uma saia na cabeça é o suficiente para fazer a festa que, desde já, tem entrada gratuita.

Blog Carnaval Da Nazaré no Top 50 nacional

A Rádio da Nazaré sempre foi a principal promotora do evento carnavalesco, mas desde 2010 que Cristiano Vagos tem desempenhado um papel fundamental na divulgação online do Carnaval nazareno. Foi nesse ano que decidiu criar o Blog Carnaval da Nazaré (www.blogcarnavalnazare.com) porque se deu conta que, assim que se aproximava o Carnaval, as mensagens no MSN Messenger disparavam com pessoas a perguntarem-lhe se já lhe tinham enviado novas marchas. “Como sou estudante de informática pus os conhecimentos em prática e criei o blogue que inicialmente servia apenas para divulgar as marchas”, conta o jovem de 24 anos.
Passados sete anos, a página evoluiu e Cristiano faz hoje divulgação de todos os eventos associados ao Carnaval, disponibiliza informações úteis (como prazos de inscrições) e inclusive criou um canal do youtube e karaokes só de marchas. O próprio blogue tem este ano uma marcha.
Actualmente o site está no Top 50 dos blogues nacionais e tem uma média de 2500 visitas diárias no período do Carnaval.