O Livro do Meio

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Gazeta das Caldas
Isabel Castanheira

Gazeta das CaldasArmando Silva Carvalho nasceu em 1938, no Olho Marinho, Óbidos e faleceu em 2017 em Caldas da Rainha. Licenciado em Direito, exerceu advocacia, foi jornalista e professor do ensino secundário; autor de uma vasta obra literária, este livro é um dos últimos que escreveu. É um livro com características especiais, escrito em parceria com Maria Velho da Costa, onde ambos trocam correspondência contando factos vividos com especial incidência nas suas infância e juventude.
Inúmeras vezes Armando Silva Carvalho faz referência às Caldas da Rainha, com particular incidência na sua experiência como aluno do Colégio Ramalho Ortigão, ou como acompanhante do seu pai, que cá vinha em negócios.
Tornou-se difícil selecionar um texto, tantos são eles e tão interessantes. Acabei por selecionar um em que Silva Carvalho faz uma descrição das Caldas de então.
Passo a transcrever:
“Tu nem sonhas o que eram as Caldas da Rainha nessa altura.
Havia ainda no um odor a Segunda Guerra, a gente estrangeira, aliás bem apanhado depois pelo Pedro Rosa Mendes num texto que passou quase despercebido.
Quando eu falo em burgueses, não penso na política, no verso do Cesariny, nem em nada. Penso no mundo em que vivi, obrigada Ilse.
O Ramalho Ortigão era um feudo medíocre da classe liberal e possidente. Aquilo era um externato pobre para meninos ricos, pobre no ensino, nos meios, e até nas instalações, sem laboratório, sem ginásio, sem espaços.
Mas não era eu que ia exigir. Eu sabia lá. Sabia disfarçar-me. Agarrado ao Machado.
Machado, Machado, tu és a minha morte, dizia a professora Rosa Bruno, de dedos espetados, com as unhas de uns a limpar as dos outros.
[…] Eu devia ter tato para que que não me explorassem nos intervalos e até nas aulas. A professora de Inglês, uma suíça alta e ditadora, não gostava de mim e não escondia. Numa festa de final de ano houve umas danças. Eu sabia dançar desde criança, tinha o sentido de ritmo fosse para que dança fosse. Mas não senhor, o Carvalho não sabe, o Carvalho não serve, nem modos, no gentleman.
Eu devia ter tato.
Nunca ninguém me viu a entrar ou a sair d’O Coradinho.
Se nalgum dia fatal isso acontecesse, eu estava feito, levavam-me a honra. E iriam bater-me, fazer ajoelhar-me, morder o pó, como ao H. que até é burguês, mas pobre filho de professor primário e um pouco infantilóide.”
Este livro é deveres interessante porque o autor consegue transmitir o ambiente existente numa pequena cidade da província, uma sociedade muito estratificada na qual a origem social de cada um era uma marca diferenciável na convivência (ou não) do dia-a-dia.