A cidade – todos os dias

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Conceição Henriques

Nascida e criada em Caldas da Rainha, em nenhum outro lugar me sinto como nesta cidade e os períodos em que vivi noutras paragens, dentro ou fora de Portugal, apenas serviram para consolidar esse meu sentido de pertença, essa ligação estreita à cidade onde nasci e onde as pessoas, na rua, me tratam pelo nome.

É, pois, desconcertante que as celebrações do dia da cidade me deixem sempre uma sensação de indiferença, quando não de enfado, ou mesmo de alguma contida irritação.
Desde há décadas que o calendário intestino de Caldas se projecta nesse almejado dia de Primavera, em que os discursos políticos fazem o milagre de criar uma meta-realidade talhada à medida de dia de festa, quase sempre sem qualquer adesão à realidade vivida e conhecida por todos nós, mas, ainda assim, aplaudida com aparente entusiasmo.
Em vésperas do 15 de Maio, já testemunhei quase tudo o que se pode testemunhar! Desde um responsável autárquico ao mais alto nível de pá na mão a ajudar os trolhas na construção de um parque de estacionamento, ao alcatroamento de vias públicas e reparação de imóveis cuja decrepitude não parece inquietar as almas nos restantes meses do ano, culminando no próprio dia com a inauguração de obras não concluídas, tudo parece valer nesta corrida alucinante ao encontro do inestimável sucesso das celebrações do dia da cidade.
Este ano, debaixo de fogo por parte de relevantes sectores da cidade quanto ao destino incerto do Hospital Termal, e depois de algum nervosismo quanto à dúvida sobre se iria ser possível reabrir aquela unidade hospitalar no dia 15 de Maio, lá exibiu o executivo municipal, entre discursos e exaltação, esse trunfo maior para calar os cépticos e contentar os optimistas.
Na verdade, todos os anos – como fato de Domingo, sem o qual não nos atrevemos a entrar na missa – assim o executivo camarário tem de exibir uma vitória, corporizada numa obra cuja visibilidade garanta o sucesso do dia da cidade e dissimule a pouca relevância de que substantivamente se reveste para a comunidade.
Ora, esta forma de celebrar o 15 de Maio, além de anacrónica e cediça, impede que a cidade se perspective numa óptica de desenvolvimento contínuo e sustentável, em que a obra feita visa o bem-estar e o progresso da comunidade, sem datas antecipadas ou adiadas de conclusão e inauguração, sem discursos panegíricos, nem fotografia para a posteridade com o poder local no lugar de centralidade onde deveriam estar os cidadãos.
Ocorre que, este ano, a situação consegue a proeza de ser mais vexatória do que aquilo a que já nos habituámos, porque nenhuma inauguração, por mais estrepitosa que seja, colmata a ausência de planeamento e revitalização estrutural de uma cidade, e porque existe nesta matéria a falha insuperável de ter o município permitido que a tradição termal de Caldas da Rainha tenha sucumbido ao ‘jogo do empurra’ entre poder central e autoridades municipais, até se ter chegado à deplorável situação em que presentemente se encontra e de que dificilmente sairá.
E é por tudo isto que, se me é permitido deixar por aqui um anseio, direi que aguardo, embora com moderada expectativa, que o executivo camarário, mudando de atitude, mude de rumo e de modelo de desenvolvimento para a cidade e concentre os seus esforços num plano que, abrangendo o dossier Hospital Termal e alguns outros de igual relevância estrutural, vá além dos 12 meses que temos pela frente até ao dia 15 de Maio de 2020.

Conceição Henriques
couto.henriques@gmail.com