“A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela” (Agamben, p.59 de O que é o contemporâneo?).
Esta citação é crítica de uma visão exclusivamente actualista, seguidista do que num dado momento – conjuntural – parece ser sem alternativa, abismo que se aproxima – fixando a medusa o nosso olhar paralisa, uma certa hiper-realidade hipnotiza-nos pela força dramática das imagens, o espectáculo não tem pontos de fuga, preenche a paisagem que se apresenta e que “consumimos”, os nossos olhos não escapam à construção artificial que os sistemas de virtualização do real vão fazendo emergir nas paisagens em que circulamos: mobiliário urbano electrónico, TM, Net, vida nas autoestradas, em ambiente citadino – na “natureza”, que só maquilhada ressurge, temos consciência da sua condição residual, é reserva natural, ecológica, agrícola, “selvagem e oxigenada” – na realidade estamos sempre à beira de um eucaliptal ou plantados do betão.
Somos o coelho diante dos faróis, sendo que os faróis são o sistema mediático no seu todo na fabricação convergente dos seus momentos narrativos dramatizados, também para efeitos de share, aparentemente inelutáveis, imersos numa linguagem que é tecno-imagética e que não corresponde ao modo como fomos alfabetizados, raramente a sabemos descodificar, além de que é insinuante, trabalha os inconscientes. Há pouco vivíamos angustiados sob o império da dívida, que lá está mas já não angustia – era angústia fabricada, ideológica – como agora – há nestas coisas um presente que “faz muro” – vivemos um ascenso de “lutas” do tipo reivindicativo, presas na lógica do sistema, nada propondo que não seja corporativo, em mistura perfeita com um crescendo dos extremismos de direita e nacionalismos – são coisas diferentes – cada vez mais localizados. A globalização produziu o seu contrário, o mercado sem fronteiras a imposição de muros e fronteiras, a fragmentação, o orgulhoso localismo bairrista, a claque, a guerra civil entre clubes, bandeiras pífias, a recusa dos “velhos” – e utópicos – internacionalismos solidários.
Ela coincide, a visão anacrónica de Agamben, desfasada, inadequada ao seu tempo e não aderente, num certo sentido, com a “técnica do estranhamento” de Brecht que nos diz que os fenómenos têm de ser entendidos a uma luz histórica, retirados das lógicas da evidência, do é “tal e qual assim” e colocados sob a luz da análise que ajuda a ver “as coisas por detrás das coisas”, que mostra demonstrando que o que “sofremos” vem de uma rede de determinações históricas, sistémicas. Bem vistas, as coisas que estão por detrás das coisas, são causas e na relação entre causas e consequências não podemos ler as consequências sem ler as causas.
Nem tudo é tão simples e sedutor como a onda da Praia Norte, nem a adrenalina, vendida em pacotinhos de efervescência, é mais que excitação programada que, tal como a do cãozinho de Pavlov, é cíclica, negócio. Em boa verdade o deus escondido chama-se moeda e o seu altar está disseminado em todos os interstícios das nossas relações reais tão tecnicamente virtualizadas.
Fernando Mora Ramos
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